Contexto histórico
O
período a que pertence o Pré-Modernismo coincidiu com o início do regime republicano (a República da Espada, de
Deodoro a Floriano) e também com a sua estabilização, liderado politicamente
por dois estados (antigas províncias na época do Império): São Paulo e Minas
Gerais. Era a chamada política do café com leite
(iniciada com o governo civil de Prudente de Moraes).
Perdurando
por mais de trinta anos, isto é, de 1894 a 1930, a República
Velha ou oligárquica destacou-se por ser
um período de grande desenvolvimento, mas também de inúmeras revoltas,
repartindo assim o país em dois Brasis.
Nas
regiões Sudeste e Sul, o trabalho foi intensificado pela imigração (italiana e
alemã, por exemplo), substituindo a mão de obra escrava e impulsionando cidades
como São Paulo, que na época imperial, não passava de 35.000 habitantes; já o
Nordeste, região massacrada por secas e pela política dos coronéis, não tinha a
mesma sorte. Devido a essa situação, líderes como Antônio Conselheiro e Padre
Cícero convenceram o povo a se revoltar contra qualquer tipo de desmando,
surgindo assim as grandes revoltas, como a Guerra de Canudos. Mas não podemos
nos esquecer também de Lampião, Antônio Silvino e Corisco, líderes do cangaço,
que aterrorizaram o Sertão Nordestino.
Mas
essas revoltas não foram somente exclusividade da região nordestina. No Sudeste
(São Paulo e Rio de Janeiro) e no Sul (Santa Catarina), o inconformismo também
se fez presente.
No
Rio, as pessoas se revoltaram contra a vacinação obrigatória do médico
sanitarista Oswaldo Cruz. Da Marinha, surgiu a Revolta da Chibata, isto é,
marinheiros exigiam a extinção do castigo corporal, um dos temas tratados por
Adolfo Caminha (1867-1897) em seu romance O Bom Crioulo. Já em São
Paulo, greves operárias, decorrentes da Revolução Bolchevique de 1917,
respaldadas pela formação dos sindicatos, exigiram melhores condições para o
trabalhador.
E
foi nesse clima de inconformismo sociopolítico que surgiu a figura de Lima
Barreto, escritor extremamente crítico.
Coincidindo
com a chamada belle époque, o Pré-Modernismo não é propriamente uma
escola literária, e sim um período eclético, por apresentar autores de
características diferentes. Onome foi sugerido pelo crítico modernista Tristão
de Ataíde (1893-1983). Ao estudar os autores em destaque entre os anos de 1902
e 1922, percebeu que entre eles não havia uma unidade para a constituição de
uma escola literária.
Para
efeito didático, o Pré-Modernismo teve o seu início oficial em 1902, com a
publicação das obras Canaã, de Graça Aranha, e Os sertões, de
Euclides da Cunha, estendendo-se até 1922 com a Semana de Arte Moderna, marco
oficial do Modernismo brasileiro.
Mas por que Pré-Modernismo?
Segundo
Tristão de Ataíde, pelo menos uma característica podia ser encontrada entre os
maiores representantes do período, característica esta que, de certa forma,
anteciparia o Modernismo brasileiro: a preocupação com os problemas sociais e
culturais do Brasil.
Graça
Aranha (1868-1934), após conviver com os alemães e os seus descendentes na
cidade capixaba de Porto do Cachoeiro, publicou Canaã, criando o
primeiro romance de ideias da literatura brasileira. Nele, o autor explorou o
duelo ideológico entre dois alemães, Milkau e Lentz. Oprimeiro pregando a
igualdade de todas as raças; o segundo, a superioridade da raça ariana.
Euclides
da Cunha (1866-1909), após participar como correspondente de guerra do jornal O
Estado de S. Paulo, anotou em sua caderneta-de-campo dados suficientes para
a composição da obra Os sertões, cujo tema, a Guerra de Canudos, era uma
“desculpa” para o autor analisar o Brasil da época.
Lima
Barreto (1881-1922), um dos mais combativos autores do período, explorou, por
exemplo, o nacionalismo exacerbado (xenofobia) em Triste fim de Policarpo
Quaresma, e o preconceito racial e a perseguição na imprensa em Recordações
do escrivão Isaías Caminha.
Monteiro
Lobato (1882-1948) gerou polêmica ao criar o personagem Jeca Tatu, simbolizando
o atraso e a miséria do sertanejo, na obra Urupês. Já em Cidades
mortas, Lobato denunciou a decadência das cidades cafeicultoras do Vale do
Paraíba.
Entretanto,
em obras desses autores, encontramos também outras características adotadas
mais tarde pelos modernistas como forma de afirmação da nossa nacionalidade.
Por exemplo: a preocupação com uma língua coloquial próxima da “brasileira”,
presente em obras de Lima Barreto, e a redescoberta de nosso folclore por
Monteiro Lobato.
Ainda
fazem parte do Pré-Modernismo poetas como Augusto dos Anjos (1884-1914), Raul
de Leôni (1884-1926) e José Albano (1882-1923) que, em suas poesias, não se
preocuparam com questões sociais e políticas.
Lima
Barreto
O
mulato Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro no
dia 13 de maio de 1881, exatamente sete anos antes da abolição dos escravos.
Filho
do tipógrafo João Henriques Barreto, conhecido por traduzir o manual de
tipografia adotado por muitos dos profissionais do ramo, e de uma professora
primária, dona Amália, com quem aprendeu as primeiras letras.
Estudante
de engenharia na Politécnica do Rio, interrompeu o curso para trabalhar, já que
precisava sustentar seus irmãos mais novos, Angelina, Carlindo e Eliézer, pois
o seu pai havia enlouquecido e sua mãe morrido.
Aposentou-se
ainda jovem da função de amanuense (pequeno funcionário público) devido ao
alcoolismo e por apresentar problemas mentais (quando bêbado, tinha
alucinações, vendo-se perseguido por animais, pelo povo e pela polícia). Por
esse motivo, foi, por duas vezes, internado no Hospital dos Alienados, onde
escreveu a obra O cemitério dos vivos.
Sobre
a loucura, a fala do narrador de Triste fim de Policarpo Quaresma parece
ser a própria voz de Lima Barreto:
“Saiu o major mais triste ainda do que
vivera toda a vida. De todas as cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste
é a loucura; é a mais depressora e pungente.”
(Triste
fim de Policarpo Quaresma)
Lima
Barreto foi um jornalista atuante e polêmico, chegando a militar na imprensa
maximalista, influenciado que foi pela Revolução Russa de 1917 e por Karl Marx
(1818-1883), teórico do socialismo e revolucionário alemão.
Sem
apoio dos intelectuais ricos e brancos, com exceção de Monteiro Lobato, que
publicou um de seus romances, não conseguiu atingir a fama com que tanto
sonhava, vindo a morrer aos 41 anos, pobre e rejeitado, no subúrbio carioca, em
1922.
Mas
Lima Barreto fez escola, influenciando inúmeros autores contemporâneos, dentre
eles, João Antônio, autor de Malagueta, perus e bacanaço;
Rubem Fonseca, autor de Feliz ano novo, e o teatrólogo Plínio Marcos,
autor de Dois perdidos numa noite suja.
Cronologia
das obras
Romances
1909
– Recordações do escrivão Isaías Caminha
1915
– Triste fim de Policarpo Quaresma
1915
– Numa e Ninfa
1919
– Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá
1948
– Clara dos Anjos
Contos
1920
– Histórias e sonhos
1952
– Outras histórias e contos argelinos
Sátira
e humorismo
1912
– Aventuras do Dr. Bogoloff
1923
– Os bruzundangas
1953
– Coisas do reino de Jambon
Artigos,
crônicas e crítica
1923
– Bagatelas
1953
– Feiras e mafuás
1953
– Vida urbana
1956
– Marginália
1956
– Impressões de leitura
1956
– Correspondência
Memórias
1953
– Diário íntimo
1953
– O cemitério dos vivos
Se
repararmos bem nas datas de nascimento e morte de Lima Barreto (1881-1922),
veremos que elas coincidem com o início do Realismo-Naturalismo e o do
Modernismo no Brasil, isto é, com a publicação das obras Memórias póstumas
de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O mulato, de Aluísio Azevedo,
romances que introduzem a época realista no Brasil, em 1881, e a Semana de Arte
Moderna, marco oficial de nosso Modernismo, em 1922. Dois momentos em que seus
autores fizeram da literatura uma poderosa arma de combate social assim como o
próprio Lima Barreto com seus romances e contos.
Um
dos três prosadores que retrataram a cidade do Rio de Janeiro – os outros dois
foram Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), das Memórias de um sargento de
milícias, e Machado de Assis (1839-1908), das Memórias póstumas de Brás
Cubas –, Lima Barreto, mulato do subúrbio, não se deixou intimidar, criando
uma gama de personagens, divididos, basicamente, em dois grupos distintos: o
dos hipócritas e, em número bem menor, o dos idealistas. Ao primeiro,
enquadram-se os militares incompetentes, políticos corruptos, ignorantes que se
passam por sábios, moças casadoiras, dentre outros; ao segundo, os chamados
quixotescos que, numa luta desigual, são alvos de chacotas e perseguições. Dentre
eles, podemos destacar Policarpo Quaresma, Ricardo Coração dos Outros e Olga,
de Triste fim de Policarpo Quaresma; Raimundo Flamel, de A nova
Califórnia; Isaías Caminha, de Recordações do escrivão Isaías Caminha,
este o alter ego de Lima Barreto. Mas o interessante é que encontramos
traços autobiográficos, não só nessa obra, mas em várias outras.
Lima
Barreto, mulato como Machado de Assis, teve uma trajetória oposta a do autor de
Dom Casmurro. Vindo de uma família remediada (chegou a cursar por algum
tempo engenharia), morreu desprezado pelos intelectuais de sua época; enquanto
Machado de Assis, de família humilde, autodidata (estudou somente até o quarto
ano primário), conheceu em vida a fama de maior escritor brasileiro. Mas o que
levou Lima Barreto (hoje um dos principais nomes de nossa literatura) a essa
rejeição? Uma das causas foi a linguagem adotada em sua prosa (muito próxima da
almejada pelos primeiros modernistas), com vícios e com uma coloquialidade
despudorada, que deixou os chamados “puristas” da língua portuguesa
inconformados. Um desses “puristas”, ou seja, aqueles escritores que só admitiam
a linguagem culta (ou correta, gramaticalmente), foi Coelho Neto (1864-1934), o
“príncipe dos prosadores brasileiros” e um dos mais conhecidos autores da
época, hoje praticamente esquecido.
Quando
Mário de Andrade (1893-1945) propôs uma “língua brasileira” como marca de uma
nova nacionalidade, disse que, para isso ser possível, era preciso,
primeiramente, “descoelhonetizar” a língua portuguesa, num declarado repúdio a
Coelho Neto e ao grupo de acadêmicos adeptos daquela última flor do Lácio,
inculta e bela, como escreveu Olavo Bilac (1865-1918), poeta parnasiano de
“sonetos bem rimadinhos, penteadinhos, lambidinhos”, segundo Lima Barreto.
Quanto
ao espaço retratado em sua prosa, Lima Barreto, ao contrário de Machado de
Assis, explorou o mesmo de Manuel Antônio de Almeida: o subúrbio carioca.
A
obra
Tendo
como um dos motivos centrais a Revolta da Armada (batalha em que o ministro da
Marinha do marechal Floriano Peixoto se rebelou e, com seus marinheiros, tentou
tomar o poder), Lima Barreto, no Triste fim de Policarpo Quaresma, traçou
um quadro crítico e satírico da chamada Velha República (ou a República dos
Marechais). Abaixo, podemos perceber o descaso com que o narrador tratou tal
batalha:
E
assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando
o serviço; em outras, um cidadão qualquer, chegava ao oficial e muito
delicadamente pedia: o senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os
serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.
Com
o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando
se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se
enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom
apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário
pratear a água e encher o céu.
Alugavam-se
binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas seguiam o
bombardeio como uma representação de teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o
‘Aquidabã’! Lá vai”. E dessa maneira, a revolta ia correndo familiarmente,
entrando nos hábitos e nos costumes da cidade.
Foco narrativo
Ao
adotar o foco narrativo em 3ª pessoa e dotado de onisciência, isto é, aquele
que sabe de tudo, até mesmo do que se passa na cabeça de seus personagens (e
para isso, o narrador se vale do discurso indireto livre, como podemos perceber
no trecho abaixo), Lima Barreto construiu um narrador que nutria franca
antipatia pelo marechal Floriano e por todos aqueles que o rodeavam, com exceção
do próprio Quaresma, por quem o narrador tinha uma simpatia declarada.
Desde
os dezoito anos, que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice
de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que
fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do
Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não.
Lembrou-se das suas cousas de tupi, do folclore, das suas tentativas
agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
Espaço
Como
vimos, Lima Barreto explorou o subúrbio carioca, e não seria diferente em Triste
fim de Policarpo Quaresma, que, já nos primeiros capítulos, nos dá a
localização exata de onde mora o protagonista: o bairro suburbano de São
Cristóvão. Há outros espaços retratados, como o sítio Sossego, o hospício, o
cárcere. A seguir, uma interessante descrição dos subúrbios cariocas, retirada
do capítulo “Espinhos e flores”, de Triste fim de Policarpo Quaresma.
Nela, podemos perceber a mescla de casas e pessoas, numa profusão de classes
sociais:
Os
subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa cousa em matéria de edificação
da cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influi decerto para
tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções.
Nada
mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado.
As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as
ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam
estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao
alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado.
(...)
Vai-se
por uma rua a ver um correr de chalets, de porta e janela, parede de
frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara uma casa burguesa,
dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se erguer sobre um porão alto
com mezaninos gradeados. Passada essa surpresa, olha-se acolá e dá-se com uma
choupana de pau a pique, coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual
formiga uma população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e colunas
de estilo pouco classificável, que parece vexada e querer ocultar-se, diante
daquela onda de edifícios disparatados e novos.
Não
há nos nossos subúrbios cousa alguma que nos lembre os famosos das grandes
cidades europeias, com as suas vilas de ar repousado e satisfeito, as suas estradas
e ruas macadamizadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins,
cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os há, são em geral
pobres, feios e desleixados.
(...)
Há
pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo que a lama
ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; há operários de tamancos; há
peralvilhos à última moda; há mulheres de chita; e assim pela tarde, quando
essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num
quarteirão, e quase sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa.
Tempo
A
história se passa durante o governo do marechal Floriano Peixoto e a Batalha da
Armada (acontecida em 1893), ou seja, época da chamada República Velha, entre o
final do século XIXe o XX. E é durante esse período que Lima Barreto procurou
retratar, de maneira detalhada e com profunda visão satírica, os costumes
sociais e políticos do Rio de Janeiro.
Linguagem
Também
já vimos que Lima Barreto não agradou nem um pouco aos intelectuais que
ditavam a “boa” literatura da época ao adotar uma linguagem coloquial
(adquirida com a experiência de jornalista), com os seus vícios linguísticos,
mas recheada de humor, ironia e autenticidade, como podemos notar neste trecho:
Era
onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada
inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia,
aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de
triunfo, que é bem o hálito da Pátria.16 Lima Barreto
Lima
Barreto antecipou o “português-macarrônico” inventado pelo poeta Juó Bananére
(1892-1933) e utilizado por Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) em obras
como Brás, Bexiga e Barra Funda. De Triste fim de Policarpo Quaresma,
retiramos a seguinte passagem:
–
O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende o senhor?
–
Como?
–
Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em diante falemos
tupi.
–
Tutti?
–
Todos os brasileiros, todos.
–
Ma che
cousa! Não é possível?
–
Pode ser. Os tcheques
têm uma língua própria, e foram obrigados a falar alemão, depois de
conquistados pelos austríacos; os lorenos, franceses...
–
Per la
madonna! Alemão é lingua, agora esse acujelê, ecco!
–
Acujelê
é da África, papai; tupi é daqui.
–
Per
Bacco! É o mesmo... Está doido!
–
Mas não há loucura alguma, papai.
–
Como? Então é cousa de um homem, bene?
–
De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.
–
Non
capisco.
–
É uma ideia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista absurdo, fora dos
moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...
Temas
Ao
explorar a xenofobia (aversão a aspectos de culturas estrangeiras) como pano de
fundo para tecer uma dura crítica ao comportamento de uma sociedade hipócrita e
pseudointelectual, Lima Barreto construiu uma das mais instigantes obras da
literatura brasileira, que o colocou entre os maiores escritores de todos os
tempos, apesar de, na época, não ter obtido tal projeção.
Durante
os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas
naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua
política. Quaresma sabia as espécies de minerais, vegetais e animais que o
Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas, as
guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os
rios. Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre todos os
demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns quilômetros
ao Nilo e era com este rival do “seu” rio que ele mais implicava. Ai de quem o
citasse na sua frente! Em geral, calmo e delicado, o major ficava agitado e
malcriado, quando se discutia a extensão do Amazonas em face da do Nilo.
Podemos
destacar vários outros temas como:
•Crítica
ao academicismo típico dos poetas parnasianos:
A
réclame
já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse um homem notável,
um grande literato, que escrevesse um artigo sobre ele e a sua obra, a estava
certa. Era difícil encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam
tão absorvidos em cousas francesas...
•Crítica
à tradicional burocracia de nossos órgãos públicos.
Éinteressante
ressaltarmos que, assim como Policarpo Quaresma, Lima Barreto também se
aposentou por invalidez (época em que era amanuense), tendo conhecido de perto
o sistema lento de nossas repartições:
Atualmente
era ele o encarregado de tratar da aposentadoria do seu antigo discípulo. É um
trabalho árduo, esse de liquidar uma aposentadoria, como se diz na gíria
burocrática. Aposentado o sujeito, solenemente por um decreto, a cousa corre
uma dezena de repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave
do que a gravidade com que o empregado nos diz: ainda estou fazendo o cálculo;
e a cousa demora um mês, mais até, como se se tratasse de mecânica celeste.
•Opreconceito
não só racial, mas social e às pessoas sem formação acadêmica e também àqueles
de formação semissuperior. Não podemos nos esquecer de que o próprio Lima
Barreto era mulato e sem formação superior.
Se
não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que
merecera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia
admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era formado, para quê?
Pedantismo!”
Aborrecia-se
com o rival, por dous fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo: por
causa das suas teorias.
O
marido tinha resistido muito em acompanhá-la até ali. Não lhe parecia bem
aquela intimidade com um sujeito sem título, sem posição brilhante e sem
fortuna. Ele não compreendia como o seu sogro, apesar de tudo um homem rico, de
outra esfera, tinha podido manter e estreitar relações com um pequeno empregado
de uma repartição secundária, e até fazê-lo seu compadre!
•Crítica
à falta de apoio do governo ao homem do campo.
Tema
também tratado, duramente, por Monteiro Lobato ao criar os personagens Jeca
Tatu e Zé Brasil. A seguir, o diálogo entre Olga e Felizardo, empregado de
Policarpo Quaresma no sítio Sossego:
–
É grande o sítio de você?
–
Tem alguma terra, sim senhora, “sá dona”.
–
Você por que não planta para você?
–
“Quá sá dona!” O que é que a gente come?
–
O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
–
“Sá dona ta” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e
então? “Quá, sá dona”, não é assim.
Deu
uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e, antes de
desferir o machado, ainda disse:
–
Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta... isso é bom
para italiano ou “alamão”, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...
Enredo
A
obra Triste fim de Policarpo Quaresma divide-se em três partes. A
primeira trata diretamente das questões nacionalistas do major Policarpo
Quaresma e da sua vida de funcionário exemplar. A segunda, da vida de Quaresma
em seu sítio Sossego e a tentativa de sobreviver cultivando a terra, além de
seu alistamento para, ao lado do marechal Floriano Peixoto, participar da batalha
da armada. A terceira trata propriamente da batalha, com a vitória do Exército
sobre os marinheiros que se rebelaram, tentando assumir o governo, e do final
trágico do major Quaresma, fuzilado por ser considerado um traidor da Pátria.
Mas vamos ao enredo:
Policarpo
Quaresma, subsecretário do Arsenal de Guerra, é um pacato cidadão (apesar de
sua patente de major, não era militar), burocrata exemplar, morador de São
Cristóvão, subúrbio carioca. Homem metódico e de poucos amigos, desde os vinte
anos de idade estudava o Brasil, tornando-se um verdadeiro xenófobo (daí sua
característica quixotesca). Sabia a sua história e geografia; a sua literatura
e música; só apreciava pratos tipicamente nacionais; só se vestia com roupas
aqui fabricadas. Irritava-se, por exemplo, quando alguém supervalorizava algo
estrangeiro em detrimento do nacional. Nessa sua obsessão nacionalista,
pretende reformar os nossos costumes a partir do cumprimento, típico dos índios
tupinambás:
Desde
dez dias que se entregava a essa árdua tarefa, quando (era domingo) lhe bateram
à porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas não apertou a mão. Desandou a
chorar, a berrar, a arrancar os cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um
filho. A irmã correu lá de dentro, o Anastácio também, e o compadre e a filha,
pois eram eles, ficaram estupefatos no limiar da porta.
–
Mas que é isso, compadre?
–
Mas, meu padrinho...
Ele
ainda chorou um pouco. Enxugou as lágrimas e, depois, explicou com a maior
naturalidade:
–
Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das cousas da nossa terra. Queriam que eu
apertasse a mão... Isto não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando
encontramos os amigos, era assim que faziam os tupinambás.
Mas
Quaresma caiu no descrédito daqueles que conviviam consigo ao começar a ter
aulas de violão com Ricardo Coração dos Outros, já que violão era instrumento
de vadios, e ao propor à câmara dos deputados a troca da língua oficial (do
português para o tupi-guarani). Policarpo Quaresma passou a ser alvo de
deboches e chacotas, principalmente na imprensa. A sua situação piorou quando,
por engano, enviou um relatório ao seu superior (quando substituíra o
secretário), escrito em tupi-guarani. Foi internado num hospício, onde
permaneceu por seis meses, recebendo visitas apenas de sua irmã Adelaide; de
sua afilhada Olga, uma das únicas pessoas por quem Quaresma nutria admiração,
pois era diferente das moças casadoiras e submissas da época, e de seu compadre
Vicente Coleoni. Após receber alta, comprou um sítio no arrabalde do Rio de
Janeiro, no município de Curuzu, para viver do cultivo da terra. Planejou uma
reforma agrícola, por isso.
não
mediu esforços para adquirir todo o material para a empreitada: animais,
máquinas, livros etc. Entretanto, encontrou inúmeras dificuldades, principalmente
em combater as saúvas que devastavam as plantações (vale aqui lembrarmos de uma
famosa frase de Macunaíma: Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são)
e a peste que consumiu com a metade de sua criação de patos, gansos e galinhas.
Além disso, temos um interessante retrato da situação campesina: a falta de
apoio aos homens do campo, fazendo com que vivessem em extrema pobreza. Ébom
ressaltarmos que essa questão fora brilhantemente tratada por Monteiro Lobato ao
criar o Jeca Tatu. Abaixo o trecho em que Olga, ao visitar o padrinho em seu
sítio, espantou-se com tanta pobreza no campo:
O
que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a
pobreza das casas, o ar triste, abatido de gente pobre. Educada na cidade, ela
tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo
tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham
telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a trama
de varas, como o esqueleto de um doente. Por que ao redor dessas casas, não
havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas? E
não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por
quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas,
baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um
milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola.
Não podia ser preguiça ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o
homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas de
preguiça, trabalham relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda
parte, os casais, as famílias, as tribos plantam um pouco, algumas cousas para
eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua
curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por
aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!...
Sem
intenção nenhuma, acaba sendo envolvido na rixa política do pequeno município,
chegando a receber represálias do chefe político.
Ao
saber dos conflitos que originaram a Batalha da Armada, enviou ao marechal
Floriano Peixoto um telegrama (“Peço energia. Sigo já”.) para, ao seu lado,
combater os marinheiros revoltosos, aquartelados na Baía da Guanabara, que, sob
o comando do ministro da marinha do marechal, tentavam tomar o governo. Tratada
de uma maneira satírica e debochada, a Batalha da Armada foi vista com descaso
pelo narrador, numa crítica à política dos militares. Observemos abaixo que o
patriotismo do contra-almirante Caldas ia até onde lhe era interessante sê-lo:
Caldas
andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora o governo não
lhe tinha dado cousa alguma. O seu patriotismo se enfraquecia com o diluir-se
da esperança de ser algum dia vice-almirante. É verdade que o governo ainda não
organizara a sua esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não
comandaria nem uma divisão. Uma iniquidade! Era velho um pouco, é verdade; mas,
por não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma energia
moça.
Com
a vitória do Exército, o major Policarpo Quaresma foi destacado para a função
de carcereiro, isto é, cuidar dos prisioneiros de guerra na Ilha das Enxadas.
Mas ao descobrir que muitos desses marinheiros estavam sendo levados para o
fuzilamento, Quaresma escreveu uma carta ao “marechal de ferro” – por quem já
havia se decepcionado ao mostrar-lhe o seu memorial para a prática agrícola e
ser chamado de visionário – criticando tal atitude, passando, então, a ser
considerado um traidor da Pátria. Prisioneiro na Ilha das Cobras, Quaresma teve
a total consciência de que tudo o que fizera pelo Brasil fora em vão. De nada
valera estudar o País, em todos os seus aspectos. Tudo indicava que ele seria
também fuzilado. No último parágrafo, Olga, que em vão tentara uma audiência
com o marechal Floriano Peixoto, na esperança de interceder pelo seu padrinho,
constatou a fugacidade das coisas, e esperançosa em dias melhores, seguiu,
serenamente, ao encontro de Ricardo Coração dos Outros:
Saiu
e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que,
por essas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se
orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro
séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as
igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por
uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo...
Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um
charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra,
talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; seguiu serenamente ao encontro
de Ricardo Coração dos Outros.
PERSONAGENS
OS
IDEALISTAS
Policarpo
Quaresma
Personagem
quixotesco, decorrente de sua xenofobia, era conhecedor profundo de literatura
brasileira (possuía uma biblioteca com mais de trinta mil títulos), história,
geografia e da fauna e flora brasileiras. Pacato cidadão, residente no subúrbio
carioca, subsecretário do Arsenal de Guerra, era respeitado por aqueles que o
conheciam, mas, ao propor a mudança da língua oficial (do português para o
tupi-guarani), caiu no descrédito popular, tornando-se alvo de pilhérias e
chacotas. Após sua permanência internado em um hospício, tentou viver da terra,
em seu sítio Sossego, mas não conseguiu. Alistou-se para lutar ao lado do
marechal Floriano na famosa Batalha da Armada, que foi ironicamente retratada
pelo narrador. Após a vitória, encarregou-se de tomar conta dos prisioneiros,
mas, ao saber que vários desses marinheiros estavam sendo fuzilados, escreveu
ao marechal criticando tal atitude. Foi preso e fuzilado.
Desde
moço, aí pelos vinte anos, o amor à Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o
amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente.
Nada de ambições políticas ou administrativas; o que o Quaresma pensou, ou
melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do
Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então
apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa.
Ricardo
Coração dos Outros
Seu
nome é uma paródia de Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra que se
envolveu em batalhas e conquistas durante o século XII. Há estudiosos que
acreditam ser o personagem uma homenagem ao poeta e compositor popular Catulo
da Paixão Cearense (1863-1946), autor, entre outras, da modinha Luar do
Sertão. Era professor de violão do major Quaresma. Alvo de forte
preconceito, o violão – tido como ocupação de vadios e vagabundos – teve lugar
de destaque na obra, já que Lima Barreto tentou fazer dele o símbolo do
instrumento nacional.
A
modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o
instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já
esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o padre Caldas, que teve um
auditório de fidalgos.
–
Major, o violão é o instrumento da paixão. Precisa de peito para falar... É
preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor, como se fosse a amada, a
noiva, para que diga o que sentimos...
Diante
do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo ele fremindo de
paixão pelo instrumento desprezado.
Olga
Afilhada
de Policarpo Quaresma, Olga, apesar de ter se submetido a um casamento por
conveniência, era diferente das moças da época. Nutria certo idealismo que a
colocava no minguado grupo a que pertencia o major Quaresma, por quem tinha
imensa admiração.
Havia
entre os dous uma grande afeição. Quaresma era um tanto reservado e o vexame de
mostrar os seus sentimentos faziam-no econômico nas demonstrações afetuosas.
Adivinhava-se, entretanto, que a moça ocupava-lhe no coração o lugar dos filhos
que não tivera nem teria jamais. A menina vivaz, habituada a falar alto e
desembaraçadamente, não escondia a sua afeição tanto mais que sentia
confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma tenacidade
em seguir um sonho, uma ideia, um voo enfim para as altas regiões do espírito
que ela não estava habituada a ver em ninguém do mundo que frequentava. Essa admiração
não lhe vinha da educação. Recebera a comum às moças de seu nascimento. Vinha
de um pendor próprio, talvez das proximidades europeias do seu nascimento, que
a fizera um pouco diferente das nossas moças.
Vicente
Coleoni
Imigrante
italiano, fora por muito tempo quitandeiro ambulante, época em que conheceu o
major Quaresma, um freguês assíduo. Passando por dificuldades financeiras,
recebeu ajuda de Quaresma. Com sua quitanda, prosperou, tornou-se empreiteiro e
enriqueceu. Casou-se, teve uma filha (Olga) e, como forma de gratidão, fez de
Quaresma o padrinho dessa criança. Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha
em grande conta o seu obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de
camponês que recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major,
oriundo de sua qualidade de funcionário e sábio.
Europeu,
de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele sagrado respeito dos
camponeses pelos homens que recebem a investidura do Estado; e, como, apesar
dos bastos anos de Brasil, ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em
grande consideração a erudição do compadre.
Dona
Adelaide
Irmã
mais velha de Policarpo Quaresma, uns quatro anos, não entendia muito bem as
ideias do irmão, por isso não as aceitava. Segundo o narrador: fria, sem
imaginação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um grande
contraste com o irmão, mas o acompanhava sempre, sentindo-se na obrigação
de cuidar dele.
Dona
Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a irem jantar. A sopa já
esfriava na mesa, que fossem!
–
O senhor Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do nosso
jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit-pois, mas Policarpo não deixou.
Disse-me que esse tal petit-pois é estrangeiro e que eu o substituísse
por guando. Onde é que se viu frango com guando?
Coração
dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade e não fazia mal
experimentar.
–
É uma mania de seu amigo, senhor Ricardo, esta de só querer cousas nacionais, e
a gente tem que ingerir cada droga, chi!
OS
HIPÓCRITAS
General
Albernaz
Um
dos muitos militares incompetentes e interesseiros que fizeram parte da obra.
Pai de cinco filhas, Ismênia, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, e de um filho, Lulu,
não media esforços para tentar casá-las e conseguir um pistolão para admitir o
filho na Escola Militar.
O
general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse.
Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um
comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de
artilheiro. Fora sempre ajudante de ordens, assistente, encarregado disso ou
daquilo, escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo
Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um bom chefe de
secção e a sua inteligência não era muito diferente dos seus hábitos. Nada
entendia de guerras, de estratégia, de tática ou de história militar; a sua
sabedoria a tal respeito estava reduzida às batalhas do Paraguai, para ele a
maior e a mais extraordinária guerra de todos os tempos.
Ismênia
Filha
do general Albernaz, era o símbolo de “moça casadoira”. Noiva do Cavalcânti,
não morria de amores por ele, mas não podia pensar na ideia de ficar para
“tia”, pois fora criada ouvindo a mãe dizer: – Aprenda a fazer isso, porque
quando você se casar... Foi abandonada pelo noivo após a sua formatura. No
leito de morte, após longo período de demência e definhamento, fez um último
pedido: ser enterrada vestida de noiva.
O
enterro foi feito no dia imediato e a casa de Albernaz esteve os dous dias
cheia, como nos dias de suas melhores festas.
Quaresma
foi ao enterro; ele não gostava muito dessa cerimônia; mas veio, e foi ver a
pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida de noiva, com um ar imaculado
de imagem. Pouco mudara, entretanto. Era ela mesma; era a Ismênia dolente e
pobre de nervos, com os seus traços miúdos e os seus lindos cabelos, que
estavam dentro daquelas quatro tábuas. A morte tinha fixado a sua pequena
beleza e o seu aspecto pueril; e ela ia para a cova com a insignificância, com
a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida.
Cavalcânti
Noivo
de Ismênia, era estudante de odontologia, um curso semissuperior de dois anos. Tendo
seus estudos bancados pelo pai da noiva, Cavalcânti prolongou o curso por
quatro anos. Não tendo mais feito de prolongar essa exploração, formou-se.
Após a festa, para não marcar o dia do casamento, fugiu para o interior,
deixando Ismênia inconsolável.
Cavalcânti,
aquele Jacó de cinco anos, embarcara para o interior, há três ou quatro meses,
e não mandara nem um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e ela,
tão incapaz de um sentimento mais profundo,de uma aplicação mais séria de
energia mental e física, sentia-o muito, como cousa irremediável que absorvia
toda a sua atenção.
Para
Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado de existir.
Genelício
Namorado
e futuro marido de Quinota, uma das filhas do general Albernaz, e empregado do
Tesouro, Genelício era o símbolo do “puxa-saquismo”, da bajulação despudorada e
do oportunismo, sempre visando a conseguir um cargo melhor.
Não
havia ninguém mais bajulador e submisso que ele. Nenhum pudor, nenhuma
vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo incenso que podia. Quando
saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as mãos, até poder apanhar o
diretor na porta. Acompanhava-o, conversava com ele sobre o serviço, dava
pareceres e opiniões, criticava este ou aquele colega, e deixava-o no bonde, se
o homem ia para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como
intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários de
nascimento, era um soneto que começava sempre por – “Salve” – e acabava também
por – “Salve! Três vezes Salve!”.
Contra-almirante
Caldas
O
que o general Albernaz fez no Exército, o contra-almirante Caldas fez na
Marinha, ou seja, quase nada, sempre encostado em serviços irrisórios. Sua
história se resume no navio que nunca comandou, o couraçado “Lima Barros”.
Mandado de um lado para outro, à cata de seu navio, não sabia que este tinha
ido a pique, durante a Guerra do Paraguai.
Todos
o tinham na conta de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata do
seu navio pelos quatro pontos cardeais. Deixaram-no “encostado”, como se diz na
gíria militar, e ele levou quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a
capitão de fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do seguinte,
todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar
leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a promoções de
oficiais. Comprava repertórios de legislação, armazenava coleções de leis,
relatórios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura
administrativa.
Dr.
Armando Borges
Marido
de Olga, formado em medicina, era como tantos outros, ambicioso, interesseiro e
preconceituoso. de tão fútil que era, certo dia entrou em desespero por sair de
casa sem o seu anel de doutor. Apesar de viver com a fortuna de seu sogro,
sempre queria mais, pretendendo empregos públicos com bom salário e pouco
trabalho. não tinha boa convivência com a mulher.
Naquela
carreira atropelada para o nome fácil, ele não deu pelas modificações da
mulher. Ela dissimulava os seus sentimentos, mais por dignidade e delicadeza,
que mesmo por qualquer outro motivo; e a ele faltavam a sagacidade e finura
necessárias para descobri-los sob o seu esconderijo.
Inocêncio
Bustamante
Assim
como o contra-almirante Caldas, o major Bustamante, apesar de interesseiro,
era servil e humilde e também vivia de demandas, não passando um dia sequer sem
ir ao quartel-general para ver o andamento de seu requerimento e de outros. A
sua patente era honorária e foi-lhe concedida por ser voluntário da pátria.
Num
pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro
tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros.
Não
se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser tenente honorário
e também da Guarda Nacional, requereu lhe fosse passada a patente de major,
visto que dous galões mais outros dous fazem quatro – o que quer dizer: major.
Dr.
Campos
Era
médico, fazendeiro e chefe político do pequeno município de Curuzu, onde
Quaresma comprara o sítio Sossego. Interesseiro e ardiloso como uma raposa, não
conseguia convencer o major a ser seu aliado e a participar das falcatruas
“eleitoreiras”. Como vingança, obrigou Quaresma a cumprir certas leis
municipais. O doutor não se zangou. Pôs mais unção e maciez na voz, aduziu
argumentos: que era, para o partido, o único que pugnava pelo levantamento da
lavoura. Quaresma foi inflexível; disse que não, que lhe eram absolutamente
antipáticas tais disputas, que não tinha partido e mesmo que tivesse não iria
afirmar uma cousa que ele não sabia ainda se era mentira ou verdade.
Campos
não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre cousas banais e
despediu-se com o ar amável, com a jovialidade mais sua que era possível.
(...)
Em
virtude das posturas e das leis municipais, rezava o papel, o Senhor Policarpo
Quaresma, proprietário do sítio “Sossego” era intimidado, sob as penas das
mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do referido sítio que
confrontavam com as vias públicas.
Marechal
Floriano Peixoto
O
presidente da República, conhecido como “marechal de ferro”, foi alvo de sátira
e crítica por parte do narrador; não só ele, mas todo o governo foi descrito de
maneira degradante, um verdadeiro retrato do Brasil daquela época.
O
palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento, representativo e eloquente.
Não era raro ver-se pelos divãs, em outras salas, ajudante de ordens,
ordenanças, contínuos, cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era
desleixo e moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes,
quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.
Notem
que o marechal foi descrito de maneira desoladora tanto física quanto
moralmente:
Era
vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se
agarrava uma grande “mosca”; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o
desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote
superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de
tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era
gelatinoso – parecia não ter nervos.
Com
uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do marechal
Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo, e no seu temperamento,
muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma
preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma
insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou,
tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.