Contista, ensaísta e tradutor, este grande nome da literatura
brasileira nasceu na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, no ano de 1882.
Formado em Direito, atuou como promotor público até se tornar fazendeiro, após
receber herança deixada pelo avô. Diante de um novo estilo de vida,
Lobato passou a publicar seus primeiros contos em jornais e revistas, sendo
que, posteriormente, reuniu uma série deles em Urupês, obra prima deste famoso
escritor.
Em uma época em que os livros brasileiros eram editados em Paris
ou Lisboa, Monteiro Lobato tornou-se também editor, passando a editar livros
também no Brasil. Com isso, ele implantou uma série de renovações nos livros
didáticos e infantis.
Fora os livros infantis, este escritor brasileiro escreveu outras
obras literárias, tais como: O Choque das Raças, Urupês, A Barca de Gleyre e o
Escândalo do Petróleo. Neste último livro, demonstra todo seu nacionalismo,
posicionando-se totalmente favorável a exploração do petróleo apenas por
empresas brasileiras.
No dia 2 de julho de 1948, Monteiro Lobato concedeu à rádio
Record aquela que seria a última entrevista de sua vida, a qual encerrou com
as palavras: “O Petróleo é Nosso”! Dois dias após, “O Repórter Esso”, na voz
de Heron Domingues, anunciou a sua morte. Monteiro Lobato, nascido em
Taubaté em 1882, falecia aos 66 anos de idade; o corpo foi velado na antiga
Biblioteca Municipal de São Paulo e em seu cortejo fúnebre, que seguiu a pé até
o Cemitério da Consolação, havia mais de dez mil pessoas a quais cantavam o
Hino Nacional. Compreendiam que Monteiro Lobato representou a seu modo o ímpeto
pioneiro, renovador, criador de tantas iniciativas fecundas e ousadas,
aventuras pessoais ou coletivas, que formatariam o Brasil moderno.
Em 1927, Lobato realiza um velho sonho: é nomeado adido comercial
nos Estados Unidos. Os quatro anos que passará na América do Norte constituirão
uma descoberta e um deslumbramento para o caipira de Taubaté: vê o gigantesco
progresso americano e o compara com a nossa lentidão colonial. Ao voltar, trará
planos grandiosos de salvação econômica para o Brasil. O primeiro deles é a
Campanha do Ferro: é preciso “ferrar o Brasil”. A próxima, ainda mais ampla,
será a Campanha do Petróleo.
Nos anos 1930 havia interesse oficial em se dizer que no Brasil
não havia petróleo. Na contramão dos interesses dominantes, fundou a Companhia
Petróleos do Brasil, e inaugurou várias empresas para fazer perfuração, sendo a
maior de todas elas a Companhia Mato-grossense de Petróleo (em 1938), que
visava realizar perfurações quase junto à fronteira com a Bolívia, cujo governo
nacionalista já encontrara seu ouro negro.
Lobato ainda sofreu crítica, censura e perseguição por parte
da Igreja Católica. O influente padre Sales Brasil, na primeira fila do
reacionarismo da guerra fria, denunciará o livro “História do Mundo Para as
Crianças” como sendo o “comunismo para crianças”.
Monteiro
Lobato sempre se declarou, corajosamente, simpatizante da Revolução Soviética;
diz o seu biógrafo que “ele ansiava por um socialismo difuso, meio anárquico,
meio romântico”. “Não possuía, entretanto, nenhum gosto pela especulação
doutrinária e por isso, jamais foi homem de partido, militante político.” Seu
contato maior com os comunistas ocorreria a partir de 1941, após o período de
confinamento no Presídio Tiradentes, durante a ditadura de Vargas. Empolgou-se
com a luta antinazista da União Soviética na Segunda Guerra Mundial e suas
conquistas e vitórias nos campos das ciências, da educação. Jamais escondeu sua
admiração e estima por Luís Carlos Prestes e o fazia de modo aberto, a quem lhe
perguntasse. Em 1945, no famoso comício do Pacaembu enviou a Prestes uma das
mais lindas e humanas saudações. Quando, em 1947, levanta-se uma nova onda de
calúnias direitistas e perseguições políticas, de sua pena nascerá a história
de “Zé Brasil”, panfleto que percorreu o país de norte a sul, acusando o presidente
Dutra de implantar no Brasil uma nova ditadura: o “Estado Novíssimo”.
A
história de Lobato com o petróleo começa em 1927, quando o presidente
Washington Luís o nomeou adido comercial nos Estados Unidos, reconhecendo o
escritor como um grande representante dos interesses culturais do Brasil. Em
sua temporada nos EUA, Monteiro Lobato acompanhou de perto as constantes
inovações tecnológicas e industriais daquele país, e convenceu-se de que o progresso
norte-americano era um fruto de investimentos em ferro, petróleo e transportes,
e que nós brasileiros deveríamos seguir o mesmo caminho dos EUA, copiando suas
políticas de desenvolvimento.
No ano
seguinte, Lobato visitou a General Motors e, entusiasmado, organizou uma
empresa para produzir aço no Brasil. Para tentar levantar recursos, o
brasileiro investiu na bolsa de valores, mas acabou perdendo tudo na crise de
1929.
Enquanto
isso, no Brasil, Júlio Prestes fora apontado como candidato à sucessão do
presidente Washington Luís na eleição de 1930. De Nova York, Monteiro Lobato
envia uma carta de apoio ao candidato por estar convencido de que a
continuidade administrativa era o que o Brasil precisava para adotar uma
política desenvolvimentista como a americana, uma vez que Washington Luís
investiu maciçamente em transporte, e Júlio Prestes já havia realizado
explorações de petróleo no estado de São Paulo. O escritor acreditava que era
preciso “explorar o petróleo nacional para dar ao povo brasileiro um padrão de
vida à altura de suas necessidades”.
A
eleição foi realizada e Júlio Prestes eleito presidente do Brasil, mas não
chegou a assumir devido à Revolução de 1930, encabeçada por Getúlio Vargas — o
candidato derrotado na eleição — para depor o presidente Washington Luís e
assumir o poder. Com a tomada do poder por métodos nada democráticos, começou a
antipatia de Monteiro Lobato pelo presidente Vargas.
O
governo getulista afirmava que não havia petróleo no Brasil, algo corroborado
pelos empresários brasileiros com o argumento de que, se houvesse petróleo no
país, as petrolíferas americanas já teriam descoberto. Não havia, até então,
nenhuma jazida de petróleo ou de gás identificada ou explorada no Brasil, mas o
poder público era incapaz de realizar explorações porque o Brasil simplesmente
não tinha tecnologia, conhecimentos básicos e nem o capital necessário para o
empreendimento.
Lobato
contudo não estava apenas convicto da existência de petróleo no Brasil, como
também suspeitava que os americanos já trabalhavam no mapeamento das áreas
petrolíferas.
A
empresa de Monteiro Lobato contava com técnicos norte-americanos, experientes
na prospecção e extração de petróleo, mas era frequentemente sabotada por
órgãos governamentais, sofrendo intervenções por motivos dos mais banais e
acabou obtendo provas de suas suspeitas sobre a ação estrangeira na prospecção
de petróleo no país.
Diante
da situação Monteiro Lobato escreveu uma carta ao presidente Vargas em janeiro
de 1935 reclamando das dificuldades impostas pelo Ministério da Agricultura em
relação às atividades de suas companhias ao mesmo tempo em que denunciava
confidencialmente as atividades da filial argentina da Standard Oil Company
(que mais tarde se tornaria a Exxon/Esso) no país com a conveniente corrupção
de fiscais do Serviço Geológico Nacional.
“[…]nossas
melhores jazidas de minérios já caíram em mãos estrangeiras e no passo em que
as coisas vão o mesmo se dará com as terras potencialmente petrolíferas. E já
hoje ninguém poderá negar isso visto que tenho uma carta em que o chefe dos
serviços geológicos da Standard ingenuamente confessa tudo, e declara que a
intenção dessa companhia é manter o Brasil em estado de ‘escravização
petrolífera’.”
Diante
da omissão do governo em relação à sua denúncia, Monteiro Lobato publicou o
livro “A Luta Pelo Petróleo”, onde denunciava o Serviço Geológico Nacional,
órgão oficial encarregado das pesquisas, da conivência com a ação de grupos
estrangeiros no Brasil ao acusar o governo de “não tirar petróleo e não deixar
que ninguém o tire”.
A
militância e o avanço de Monteiro Lobato, contudo, interferiam nos interesses
de grandes grupos e do governo federal. Em 1936 uma das sondas do escritor
sofre intervenção federal e é interditada. O escritor segue adiante, levanta
alguns recursos e finalmente encontra gás natural de petróleo a 250 metros de
profundidade em Riacho Doce, Alagoas. A Companhia prossegue os trabalhos de
prospecção. Neste mesmo ano Monteiro Lobato publicou outro livro, intitulado “O
Escândalo do Petróleo”, que esgotou três edições no mês de lançamento, onde
denunciava dois técnicos estrangeiros do Departamento Nacional de Produção
Mineral pela “venda de segredos do subsolo a empresas estrangeiras”. No ano
seguinte o livro é censurado pelo governo federal e o sagaz escritor edita um
terceiro livro sobre o assunto: “O Poço do Visconde – Uma aula de geologia para
crianças”.
Em 1938
o governo federal decidiu explorar um poço no município de Lobato, na Bahia
(atualmente um bairro de Salvador) e constata a existência de petróleo. No ano
seguinte cria o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), que seria a primeira
iniciativa para regular e estruturar a exploração de petróleo. Até então havia
uma disputa entre empresários (caso de Lobato e das petrolíferas estrangeiras)
e ideais nacionalistas, divulgados pelo governo getulista, sobre a exploração
petrolífera no país. Uma alteração de última hora no decreto-lei que
instituiria o CNP passou a considerar patrimônio da União todas as jazidas de
petróleo em solo brasileiro, inclusive as ainda não encontradas.
Em 1941
Monteiro Lobato envia outra carta ao presidente Getúlio Vargas com severas
críticas à política brasileira de exploração de minérios e acaba preso pelo
general Horta Barbosa, que mais tarde se tornaria líder da campanha
nacionalista “O petróleo é nosso”. Pela carta Lobato foi condenado a seis
meses de prisão sem direito a banhos de sol.
Na Casa
de Detenção, José Bento Monteiro Lobato escreveu carta ao Sr. José Adriana
Marrey Jr. (procurador de justiça), cujos excertos principais foram publicados pelo jornal O Estado de
S. Paulo.
“Casa
de Detenção, 3-4-1941 Marrey Júnior
Não
resisto à tentação de escrever esta, às 6 da manhã, na Sala Livre, com a
passarinhada barulhando nas grandes árvores que aparecem extramuros e os meus
seis companheiros ainda deitados.
Escrever
esta para dizer uma coisa apenas: um homem só escapa da língua libérrima desta
gente presa, que justamente porque presa se sente numa segurança que não há aí
fora, e fala com o coração nas mãos, sem medo de coisa nenhuma, porque o pior
já aconteceu.
Esse
homem é você, Marrey.
O
arrasamento do pessoal de aí fora é integral... mas o nome de Marrey é sagrado.
É o único advogado honesto... É o advogado estudioso; é o que melhor analisa o
argumento, o melhor isto e aquilo; é o melhor tudo.
Todas
as noites, os debates da Sala esquentam e o arrasamento das personalidades é
praticamente integral – mas o nome de Marrey fica alto, isolado – como um ilha.
Que
bonito, Marrey! Que coisa reconfortante!
Receba,
pois, os cumprimentos de um colega que nunca teve a ocasião de aproximar-se de
você, mas que vai sair daqui profundissimamente impressionado com a única coisa
que aprendeu na sua longa passagem pelo xadrez: há um advogado sobre cuja
honestidade e valor os grandes e verdadeiros juízes dos advogados, que são os
presos, juram a pés juntos: Marrey Júnior.
Unanimidade
absoluta!... Que coisa bonita, Marrey! Que tremenda consagração!
Receba,
pois, o comovido abraço deste preso que sempre pregou, acima de tudo, no mundo,
esta coisa maravilhosa chamada honestidade, e que, por causa dela, está
passando por aqui um pedaço de sua vida. (a) Monteiro Lobato.”
O
criminalista paulista dr. Raimundo Pascoal Barbosa levantou, na Casa de
Detenção de São Paulo, os seguintes dados sobre a prisão de Monteiro Lobato:
“Devidamente escoltado por investigadores desta Especializada (Delegacia
Especializada de Ordem Política e Social), com este apresento-lhe o dr.
Monteiro Lobato, que deverá ser recolhido preso, à ordem e disposição desta,
incomunicável, na Prisão Especial desta Detenção”. 27 de janeiro de 1941. Do
prontuário: “Removido em 30-1-41 para a Superintendência de Segurança Política
e Social, de conformidade com a determinação constante do ofício de 30-1-41 do
dr. Delegado de Ordem Política e Social, a fim de depor no inquérito em que é
indiciado. Removido”.
“Condenado
pelo Tribunal de Segurança Nacional em sessão realizada em 20-5-41, à pena de
seis meses de prisão celular, como incurso no artigo 3º, nº 25 do Decreto-lei
nº 431, de 1939.
Liberdade
em 20-06-41 de conformidade com os dizeres do ofício de 20-6-41, do dr.
Delegado de Ordem Política e Social e conforme dizeres do telegrama nº 2.237
expedido pelo Juiz-Presidente do Tribunal de Segurança Nacional, visto haver
sido, por Decreto do Exmo. Sr. Dr. Presidente da República, datado de 17-6-41,
indultado do resto da pena de seis meses de prisão celular que lhe foi imposta
pelo delito contra a Segurança Nacional.”
Saindo da prisão, declarou:
“Depois
que me vi condenado a seis meses de prisão, e posto numa cadeia de assassinos e
ladrões só porque teimei demais em dar petróleo à minha terra, morri um bom
pedaço na alma.”
No
mesmo ano foi descoberto o primeiro poço de exploração comercial, em Candeias,
também na Bahia, e o governo avançou na prospecção de petróleo no país. Após a
promulgação da Constituição de 1946 foi travado um grande debate em relação à
política do petróleo, uma vez que o presidente Dutra defendia uma política
econômica liberal, de abertura ao capital estrangeiro, o que significaria
simplesmente a entrega da exploração do petróleo brasileiro aos interesses das
multinacionais. Contudo, na época não havia no Brasil uma empresa nacional com
capital e tecnologia necessários para a exploração de petróleo.
CARTAS DE MONTEIRO LOBATO À GETÚLIO VARGAS
São
Paulo, 20 de janeiro de 1935
Dr. Getúlio
Vargas
Por
intermédio do meu amigo Rônald de Carvalho, procurei no dia 15 do corrente,
fazer chegar ao seu conhecimento uma exposição confidencial sobre o caso do
petróleo, estou na incerteza se esse escrito chegou a destino. Talvez se
perdesse no desastre do dia 20. E como se trata de documento de muita
importância pelas revelações que faz, seria de toda conveniência que eu fosse
informado a respeito. Nele denuncio as manobras da Standard Oil para
senhorear-se das nossas melhores terras potencialmente petrolíferas, confissão
feita em carta pelo próprio diretor dos serviços geológicos da Standard Oil of
Argentina, que é o tentáculo do polvo que manipula o brasil. E isso com a
cooperação efetiva do sr. Victor Oppenheim e Mark Malamphy, elementos seus que
essa companhia insinuou ou no Serviço Geológico e agora dirigem tudo lá, sob o
olho palerma e inocentíssimo do dr. Fleuri da Rocha. É de tal valor a
confissão, que se eu der a público com os respectivos comentários o público
ficará seriamente abalado.
Acabo
agora de obter mai uma prova da duplicidade desse Oppenheim, cornaca do Fleuri.
Em comunicação reservada que ele enviou para a Argentina ele diz justamente o
contrário, quanto às possibilidades petrolíferas do Sul do Brasil, do que faz
aqui o Fleuri pelos jornais, com o objetivo de embaraçar a marcha dos trabalhos
da Companhia Petróleos.
O
assunto é extremamente sério e faz jus ao exame sereno do Presidente da
República, pois que as nossas melhores jazidas de minérios já caíram em mãos
estrangeiras e no passo em que as coisas vão o mesmo se dará com as terras
potencialmente petrolíferas. E já hoje ninguém poderá negar isso visto que
tenho uma carta em que o chefe dos serviços geológicos da Standard ingenuamente
confessa tudo, e declara que a intenção dessa companhia é manter o Brasil em
estado de "escravização petrolífera".
Aproveito
o ensejo para lembrar que ainda não recebi os papéis, ou estudos preliminares
do serviço que V. Excia. Tinha em vista organizar, por ocasião do encontro que
tivemos em fins do ano passado, no Palácio Guanabara.
Respeitosamente,
J. B.
Monteiro Lobato
São
Paulo, 19 de agosto de 1935
Dr.
Getúlio Vargas
Rio de
Janeiro
Excelentíssimo
Senhor:
Conforme
previ na última audiência que me foi concedida a 15 do corrente, há alguém
interessado em embaraçar a ação da Cia Petróleos do Brasil, dificultando a
obtenção da autorização para que ela siga seu curso natural, fora das
restrições do Decreto nº 20.799, que, em requerimento ao Ministério da
Agricultura, foi pedida. E como V. Excia., me autorizou, neste caso, a recorrer
diretamente a V. Excia., como guardião que é dos verdadeiros interesses
nacionais, sou forçado a lançar mão desse recurso.
Negam-nos
a autorização pedida, dificultando, retardando, protelando o necessário
decreto. Isso vem impossibilitar a atividade da Cia Petróleos do Brasil. Os
homens contratados à custa de tanto sacrifício monetário para procederem em
nosso território quatro meses de provas, nada poderão fazer já que a companhia
que os contratou não pode fazer contratos de opção nos terrenos a serem
examinados. E desse modo terão de regressar para a América do Norte sem que o
Brasil se beneficie das vantagens incomensuráveis da série de provas previstas
e para as quais a nossa empresa se formou.
Isso
constitui um crime imperdoável, além de denunciar de modo esmagador que há
gente paga por estrangeiros para que o Brasil não tenha nunca o seu petróleo.
Em vez de, pelas funções de seus cargos, esses homens tudo fazerem para que
tenhamos petróleo, quanto antes, tudo fazem para que não o tenhamos nunca. O
caso é, pois, desses que pede a imediata intervenção de homens que, como V.
Excia., só têm em vista os altos interesses do País.
Assim,
de acordo com a promessa que V. Excia. Me fez, venho denunciar a manobra da
sabotagem burocrática e pedir o remédio urgente.
O engenho e o fabrico do açúcar no Brasil colonial
"De 1500 a 1822, do descobrimento
à independência, o Brasil exportou mercadorias num total de 586 milhões de
libras esterlinas. Nesse total de valores, a que produção cabe o maior
contingente? Ao ouro, responder-se-á. Não: o ouro contribuiu apenas com 170
milhões. O café, só começou no fim, e, na nossa balança comercial, pesava menos
do que o arroz, do que o algodão, do que o fumo, as madeiras, os couros, e
apenas um pouco mais que o cacau. Sua exportação, no período colonial, não
passou de quatro milhões, no total. Houve, do descobrimento à independência, um
produto que, sozinho, rendeu mais do que todos os outros reunidos, aí
incluindo-se os da mineração: o açúcar, do qual exportamos 800 milhões de
libras esterlinas". Luís Amaral, história geral da
agricultura brasileira v. 1, p. 326, 1958.
A proposta deste texto é mostrar como o açúcar da cana-de-açúcar chegou ao
Brasil, como se estruturavam os canaviais, os engenhos, como era o fabrico do
açúcar, assim como relatar um pouco da história econômica brasileira no período
colonial, época na qual o açúcar no século XVII se tornou o "ouro
branco" da colônia portuguesa.
Um dos melhores relatos sobre a produção açucareira e o fabrico do açúcar foi
escrito pelo jesuíta italiano Giovanni Antonio (1649-1716), o
qual morando no Brasil passou a adotar o nome de André João Antonil. Em 1711 ele
publicou em Lisboa seu livro, Cultura e Opulência
no Brasil por suas drogas e minas. Neste livro ele comenta de forma
detalhada a realidade do cultivo da cana, a estrutura do engenho e o fabrico do
açúcar, tendo como base os engenhos baianos nos fins do século XVII e idos do
XVIII. O livro original possui mais de 200 páginas, embora trate também da
produção do tabaco, da mineração do ouro, da pecuária, etc. A primeira parte do
livro é dedicada apenas a abordar a produção do açúcar. Aos interessados,
recomendo ler este livro que possui versões em português atual.
O açúcar: da Ásia as Américas
Originalmente havia seis espécies de Saccarum, nome científico da
cana-de-açúcar. A primeira espécie a ser domesticada foi a Saccarum officinarum, a qual com o passar dos séculos
e o aumento pelo interesse do cultivo dessa planta, levou-se a hibridização entre
as espécies, levando a criação de espécies híbridas, as quais possuíam
características melhores do que as plantas originais. O cruzamento entre
espécies no cultivo de plantas ou na criação de animais é algo comum e bastante
antigo, pois o ser humano notou que determinadas características físicas
poderiam ser transmitidas pelo cruzamento. Vale lembrar que essa ideia surgiu
muito antes da concepção de DNA, genética, fenótipo, etc.
Outro fato curioso é que a cana-de-açúcar pertence a família das Poaceae, família esta a qual pertence o milho, o arroz, o sorgo, trigo, cevada,
centeio, aveia, bambu, etc.
"A cana sacarina não atinge a altura de uma árvore, mas a do milho
e de outras canas, erguendo-se em calamos de sete a oito pés, com uma polegada
de grossura. É esponjosa, suculenta e cheia de um miolo doce e branco. Teem as
folhas dois côvados de comprimento, a flor é filamentosa e a raiz macia e pouco
lenhosa. Desta saem rebentos para a esperança de nova safra. Gosta de solo
úmido, clima quente e ar mais tépido. A índia Ocidental é feracíssima destas
canas, conquanto também as produza a Oriental". (BARLÉUS, 1940, p. 74).
A cana-de-açúcar é originária da ilha de Nova Guiné, de onde se espalhou
pelo arquipélago malaio, a Indonésia, até que migrou para o continente, se estabelecendo na Índia e no sudeste asiático
em países hoje como Vietnã, Camboja, Laos, Myanmar e o sul da China. Na Índia
encontramos menções ao cultivo dessa planta e ao uso ritualístico da mesma em
alguns textos antigos, por exemplo, no Mahabharata, importante poema
hindu, há menções a cana-de-açúcar, inclusive que o deus do amor Kama, possuía um arco feito de cana. Seria daí a ideia que o amor é doce?
A cana foi cultivada ao longo de séculos por diferentes povos asiáticos,
contudo não se tem uma certeza de quando ela migrou para o oeste asiático.
Amaral [1958] apontou que a cana teria sido levada para aPérsiaainda
no tempo deAlexandre, o Grandenoséculo IV a.C, pois sabemos que
Alexandre realizou incursões até a Índia. E da Pérsia a planta
teria chegado aSíria. Contudo, sua distribuição
pelo Oriente Médio se deu com osárabes, séculos depois, já na Idade Média.
Com a expansão doimpério islâmicodos descendentes do legado do profetaMaomé(570-632),
no final do século XI aEuropa cristãentrou em conflito com o mundo árabe, o principal motivo, a conquista da
sagrada cidade deJerusalém. Com o desenrolar dasCruzadas, os europeus tiveram contato com novas plantas, animais, povos e
culturas, e um destes contatos foi com a cana-de-açúcar a qual atraiu o
interesse de algunscomerciantes italianos,
que levaram algumas mudas para serem plantadas na Sicília e nailha
de Rodes. Além disso, a expansão árabe levou esse
povo do deserto a adentrar oEgitoe se espalhar pelo norte e o leste daÁfrica.
Na região que hoje é o Marrocos, os árabes
atravessaram o Estreito de Gibraltar e adentraram o que hoje é o sul da Espanha. Nos séculos
seguintes eles expandiram seus domínios na península Ibérica, governado grandes
partes dos atuais territórios de Portugal e Espanha, e com essa colonização, eles implantaram o cultivo de novas
plantas: laranjas, limões, chá, inclusive a cana-de-açúcar. Os árabes que se
miscigenaram nesse tempo com povos berberes do norte da África, passaram a serem chamados pelos espanhóis e
portugueses de mouros. Na Itália, Grécia e
na Terra Santa, os europeus chamavam os árabes também de sarracenos.
O açúcar por muito tempo foi usado na Europa como medicamento, nesse
caso, os médicos recitavam o seu consumo puro, ou o mesmo era usado como
ingrediente no fabrico de poções, pastas, beberagens, etc. Embora propriamente
não possua propriedades curativas eficientes, o açúcar com seu alto teor de
sacarose é um energético natural.
"Servia de remédio, de emplastro, de moeda e até de agente para a magia
negra, com bruxedos e quiromancias." Segundo Thevet, "les Anciens estimerent for le sucre de l'Arabie, pour se qu'il
estoit souverain... en médecines, mais aujord'huy la volupté est augmentée
jusques là que l'on ne saurait faire si petit banquet que toutes les saulces ne
soyent sucrées, et aucune Pois les viandes". (AMARAL, 1958, p.
327).
"O sumo das primeiras é de louvar pela limpidez e utilidade, e esta
utilidade conhecem-na as cozinhas e as farmácias, os sãos e os enfermos, pois
serve o açúcar de alimento e de remédio. É depois da manteiga, um regalo da
nossa alimentação e um grato estímulo da gula nos doces e nas sobremesas".
(BARLÉU, 1940, p. 74).
Ainda hoje existem medicações que utilizam açúcar na receita, por exemplo, o soro caseiro leva açúcar e sal no seu preparo. Mas
hoje se sabe que em grande quantidade ele é bastante prejudicial a saúde,
contudo, na Idade Média e na Idade Moderna era comum o uso do que chamamos hoje
de medicina alternativa, logo, possuímos uma infinidade de medicamentos
naturais que usavam os mais diversos tipos de ingredientes, que lembram as
mirabolantes poções mágicas vistas na literatura, nos filmes e desenhos. Com o
açúcar não foi diferente. Barléu [1940] conta brevemente que o açúcar em tempos
antigos, era usado como remédio para problemas no estômago, intestinos, fígado
e outros males.
Além do fato de ser usado como medicamento, o açúcar também era usado no
preparo de alimentos e bebidas, afinal era uma das especiarias das Índias.
Logo, vemos em alguns países como Portugal, os Reinos hispânicos (a Espanha só
foi unificada no final do século XV), nas cidade-Estados italianas, na França e
na Inglaterra, nobres ou ricos comerciantes dando baús com açúcar como
presente, algo considerado um presente de luxo.
"Antigamente um pão de açúcar
(cada pão tinha pouco mais de dois quilos) era arrolado como bem precioso, nos
tesouros reais. Atribuía-se ao produto da cana virtudes miraculosas para a
saúde. Sete pães de açúcar (14 quilos), deixa a mulher de Carlos V da França,
no seu testamento, entre joias preciosas. E o sucessor deste rei dá a outro
soberano, como presente real, mais alguns quilos da mágica mercadoria." À
época do descobrimento do Brasil, a Europa tomava tudo com açúcar: a carne, o
vinho, o peixe". (AMARAL, 1958, p. 327).
Na Inglaterra do governo dos Tudor no século XVI, o açúcar era tão caro, que apenas os ricos o
compravam. Uma fato curioso é que como as pessoas não tinham o hábito de
escovar os dentes, ou usar outro meio para limpá-los; de tanto consumirem
açúcar e doces, os dentes acabavam ficando escuros devido as cáries. Contudo, a
nobreza soube contornar esse fato. Os dentes cariados passaram a ser sinônimo
de "riqueza", pois significava que para ter dentes escuros devido ao
açúcar, você deveria ter muito dinheiro para comprar açúcar. Logo, havia casos
de pessoas menos abastadas que passavam fuligem e outras substâncias para
escurecerem os dentes. As classes mais baixas sempre quiseram imitar o modo de
vida das elites.
Até o século XVIII na Europa, o açúcar ainda continuaria a ser um
produto lucrativo e por muito tempo acessível apenas pelas elites, pois nos
casos das classes baixas, quando essas conseguiam ter acesso a esse produto,
consumiam um açúcar de péssima qualidade, geralmente o chamado açúcar mascavo,
que era visto como de qualidade inferior, e relegado as classes menos
abastadas.
No século XV, os portugueses já possuíam seus canaviais no sul de
Portugal, na região de Algarves, e com o início da Era dos descobrimentos em 1415 com a conquista da
cidade moura de Ceuta no Magreb (hoje Marrocos), os lusos iniciaram
suas viagens ultramarinas pela costa ocidental africana e pelo oceano adentro.
Por volta de1418 os navegadores João Gonçalvez Zarco e Tristão Vaz Teixeira descobriram a ilha do Porto Santo, e no ano seguinte, Zarco retornou em companhia de Bartolomeu
Perestrelo e descobriram a ilha da Madeira, a qual veio a batizar o arquipélago. O infante D. Henrique (1394-1460) um dos principais
responsáveis pela política expansionista marítima de Portugal, foi quem expediu
as ordens para se iniciar o cultivo de cana na Madeira, nos Açores, no Cabo Verde e em outras localidades. D. Henrique viu que o açúcar era um produto
rentável, e decidiu ampliar os canaviais nos domínios portugueses.
Na Ilha da Madeira onde surgiram os primeiros engenhos portugueses, neste caso
em 1452, Diogo Vaz de Teive, escudeiro do infante D.
Henrique, construiu o primeiro engenho na ilha, na Capitania do Funchal.
Seu engenho era movido a água. Em 1590,Gaspar Frutuoso,
autor de Saudades da Terra, apontava a
existência de mais de 30 engenhos apenas na Madeira, embora salienta-se que a
produção açucareira madeirense estivesse em declínio devido a produção
brasileira que a ultrapassara.
"Em 1440 uma arroba valia, na
Inglaterra, 18,30 gramas de ouro, que representam 1:120$000 em poder aquisitivo
de hoje, ou sejam 75$000 o quilo. Em 1470, este preço havia baixado para
45$000, e, em 1501, valia apenas 8$500 o quilo. A produção portuguesa,
principalmente a da Ilha da Madeira, provocou a destruição das culturas do
Mediterrâneo e o desequilíbrio no comércio". (SIMONSEN, 1937, p. 145).
Para tentar aumentar o preço da arroba do pão-de-açúcar, em 1496 o rei português, D. Manuel Ilimitou a produção
açucareira da Madeira em 120 mil arrobas anuais, a fim de controlar a
disponibilidade do produto e logo os preços de venda e compra. Diminuindo a
oferta da mercadoria, os preços aumentariam. Dessas 120 mil arrobas, segundo
uma nota de Furtado [2005], 40 mil arrobas destinadas a Flandres, 16 mil para
Veneza, 13 mil para Gênova, 15 mil para Chios e 7 mil para a Inglaterra. Tais
países eram os principais consumidores do açúcar português.
Em 1493, Cristóvão Colombo (1451-1506) retornava ao Novo Mundo, ao mar da Caraíbas ou mar do Caribe, onde um ano antes
havia chegado, acreditando que se encontrava em algum lugar das Índias, daí ter
chamado os habitantes naturais de índios. Colombo havia
"descoberto" o Novo Mundo, as Índias Ocidentais, as Américas em 12 de outubro de 1492, nessa viagem de retorno ele foi
incumbido pelo rei de Espanha de continuar a exploração de outras ilhas, pois
embora no ano anterior Colombo havia chegado a uma ilha nas Bahamas que ele batizara de San Salvador, nessa segunda
viagem, ele avistou e visitou outras ilhas, mas optou em aportar numa grande
ilha que foi batizada em 1493 de Hispaniola ("pequena Espanha") atual ilha de São Domingos, onde se localizam
os países daRepública Dominicana e o Haiti, os quais
dividem a mesma ilha. Foi em Hispaniola que Colombo fundou a vila de La Natividad e plantaram o primeiro canavial das
Américas.
O açúcar chega ao Brasil:
Em 22 de abril de 1500 a frota de doze navios comandados por Pedro Álvares Cabral (1467/1468-1520) avistou
terra, a qual batizara de Ilha de Vera Cruz. Após fazerem
contato com os indígenas, poucos dias depois a terra
"descoberta" foi rebatizada para Terra de Santa
Cruz, para que décadas depois viesse a ser chamado de Brasil. Mas de
qualquer forma dessa data de 1500 até 1532, Santa Cruz não foi colonizada, os
portugueses apenas se ocuparam em mapear a costa, fazer contato com os
indígenas, descrever a fauna e flora, extrair pau-brasil, pois ouro e prata
não foram descoberto neste tempo. Além disso, o comércio de especiarias na Ásia
era bem lucrativo e concentrava os esforços políticos e econômicos da Coroa,
afinal Cabral iniciou sua viagem com a missão inicial de chegar novamente a
Índia, usando a rota descoberta por Vasco da Gama (1460/1469-1520)
em 1498.
Além desse lucrativo comércio das especiarias orientais, Portugal também não
mostrou interesse em plantar inicialmente cana no Novo Mundo algo que os
espanhóis fizeram, pois a produção na Madeira, Açores, Cabo Verde e Algarves
supria as necessidades de consumo. Normalmente nas escolas vemos que as
primeiras mudas chegaram em 1531 na expedição de Martim Afonso de Sousa, contudo há indícios
que houve tentativas anteriores de se cultivar cana no Brasil, e possivelmente
teriam dado êxito.
Amaral [1958] aponta que no ano de 1516 a Casa da Índia, uma companhia
mercantil portuguesa que cuidava de negócios nas Índias, cogitou enviar alguns
produtores de cana-de-açúcar para Santa Cruz, a fim de estudar a terra e as
possibilidades de se plantar cana. O historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), nos revelou um
parecer interessante sobre a proposta da Casa da Índia:
“Sabemos, que em 1516 ordenou, por um alvará, ao feitor e officiaes da
Casa da Índia que dessem machados e enchadas e toda a mais ferramenta ás
pessoas que fossem a povoar o Brazil"; e que, por outro alvará, ordenou ao
mesmo feitor e officiaes que «procurassem e elegessem um homem prático e capaz
de ir ao Brazil dar principio a um engenho de assucar; e que se lhe desse sua
ajuda de custo, e também todo o cobre e ferro e mais cousas necessárias"
para a fabrico do dito engenho”. (VARNHAGEN, 1858, p. 95).
Em1526, nos registros
alfandegários de Lisboa já constava imposto sobre açúcar produzido em
Santa Cruz. Amaral sugere que se houvesse canaviais por essa época,
provavelmente eles deveriam estar ou emIlhéus como sugeriuGabriel Soares de Sousa, ou
emItamaracá, onde se encontrava uma
das mais importantes feitorias da colônia. Para Amaral, os canaviais deveriam
estar em Itamaracá, pois lá ficava a feitoria deCristóvão Jacques(ca.
1480 - ca. 1530), um nobre português que chegou ao Brasil em 1503. Jacques
retornou em 1516 e permaneceu três anos, liderando patrulhas marítimas para se
combater os piratas franceses, indo da costa do Rio Grande do Norte até a foz
do Rio da Prata. Sabe-se que ele em suas viagens combatera os franceses algumas
vezes, e fez prisioneiros. Em 1521 ele retornou e fundou uma feitoria em
Itamaracá, a qual Amaral [1958] cogitava ser o local de onde provinha o açúcar
mencionado nos registros alfandegários lisboetas de 1526, contudo, não se tem
certeza se o açúcar realmente proveria dali, ou se havia canaviais antes de
1532.
"A lavoura de cana no Nordeste - pode-se acrescentar, no Brasil - parece
ter começado nas terras de Itamaracá, à beira da água doce, como também da
salgada; das duas águas ao mesmo tempo. E quando depois se regularizou, com
Duarte Coelho, foi para acompanhar as 'terras vizinhas das ribeiras'".
(FREYRE, 1967, p. 20).
Em 1527, Cristóvão se encontrava em Portugal e sugeriu ao rei D. João III,
retornar ao Brasil para iniciar a colonização, mas o rei recusou a aceitar tal
pedido, e três anos depois enviou a expedição de Martim Afonso de Sousa com
esse intuito. É importante mencionar que expedições regulares partiam todos os
anos de Portugal para o Brasil, a fim de cortar pau-brasil, explorar a costa e
defender as terras, principalmente dos franceses, embora que os espanhóis
também passaram por ali nesse tempo.
Marfim Afonso de Sousa
Em 1530 o rei de Portugal
D. João III nomeou o nobre e militar Martim Afonso de Sousa(c.
1490/1500-1571) para uma importante missão na colônia portuguesa de Santa Cruz,
pois oficialmente só passaria a ser chamada Brasil, alguns anos depois, embora
que extraoficialmente alguns marinheiros já chamassem a colônia de Brasil
devido ao comércio do pau-brasil. A missão de Martim era proteger a costa dos
navios franceses que iam contrabandear pau-brasil, além de realizar novas
explorações por terra e até mesmo escolher um local para iniciar um pequeno
núcleo urbano, esse foi o antecedente das capitanias hereditárias.
"31 de Janeiro de 1531 estavam diante do Cabo de Santo Agostinho e já
na costa de Pernambuco; encontrando navios franceses deram-lhes
caça, tomando três, um queimado, outro enviado ao reino carregado de
brasil, o terceiro encorporado à armada, que ia a caminho do Rio da Prata.
Na Bahia foram acolhidos por Diogo Álvares, o Caramurú, e Pero Lopes
achou, das baianas, que “eram mui fermosas e não haviam nenhuma inveja às
da rua Nova, de Lisboa”. (Diário de Navegação, ed. de E. de Castro, Rio,
1927, p. 154). Depois no Rio de Janeiro, (p. 174) onde se demoraram,
fizeram desembarque(14) e exploração, terra a dentro: “a gente
deste rio é como a da Baía de Todos os Santos, senão quanto é
mais gentil gente”, diz ainda Pero Lopes". (PEIXOTO, 1944, p.
86).
Martim e seus homens seguiram até oRio da Prata, mas em 1532 retornaram para o norte e aportaram nailha
de São Vicente(hoje na costa de São Paulo), lá ele escolheu o local para fundar a
primeira vila da colônia, aVila de São Vicente, na ocasião também se
plantaram mudas de cana-de-açúcar e se construiu um engenho chamado"Engenho
dos Erasmos". Ainda no mesmo ano
fundou-se aVila do Piratiningacom o apoio deJoão Ramalho, português exilado naquela
região que acabou se tornando genro do caciqueTibiriça. A vila do Piratininga ficava continente adentro, já indo em direção ao
planalto. Anos depois fundou-se aVila de Santose aVila de Santo Amaro.
"A cana
de açúcar trazida para aí, da Madeira (Gabriel Soares diz que
viera primeiro de Cabo Verde para os Ilhéus) deu o primeiro
engenho de açúcar, que chegou a ser próspero, sob o nome engenho
dos “Erasmos”, de uma firma de ricos homens de Flandres,
Erasmo Schetz, a cujos feitores se refere Anchieta. Na futura vila
de Santos, junto a S. Vicente, Braz Cubas estabeleceu o
primeiro monjolo, ou engenhoca, de pilar cereais". (PEIXOTO, 1944, p.
89).
Mapa da ilha de São Vicente,
Luiz Teixeira, 1586.
Dois anos após a
fundação da Vila de São Vicente, o rei D. João III decretava a criação das Capitanias
Hereditárias no Brasil, dividindo a costa em
15 capitanias iniciais e as doando a seus donatários responsáveis
para colonizar a terra e desenvolver a agricultura e a pecuária, assim como
continuar a explorar aquelas matas em busca de riquezas.
"Os donatários seriam de juro e herdade senhores de
suas terras; teriam jurisdicção civil e criminal, com alçada até
cem mil reis na primeira, com alçada no crime até morte natural
para escravos, indios, peões e homens livres, para pessoas de mór
qualidade até dez annos de degredo ou cem cruzados de pena;
na heresia (se o herege fosse entregue pelo ecclesiastico),
traição, sodomia, a alçada iria até morte natural, qualquer que fosse a
qualidade do réu, dando-se appellação ou aggravo somente si a
pena não fosse capital. Os donatários poderiam fundar villas, com
termo, jurisdicção, insignias, ao longo das costas e rios navegáveis;
seriam senhores das ilhas adjacentes até distancia de dez léguas da
costa; os ouvidores, os tabelliães do publico e judicial seriam
nomeados pelos respectivos donatários, que poderiam livremente dar
terras de sesmarias, excepto á própria mulher ou ao filho herdeiro".
(ABREU, 1907, p. 36).
Em 1535, o donatário de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira (ca. 1485-1554) fundou o primeiro
engenho da sua capitania, nas cercanias da Vila de Olinda (fundada por
Duarte em 1534), chamadoEngenho Velho. Para Amaral [1958] a importância
do Brasil como novo polo açucareiro era demasiadamente clara, ao ponto de que
em 1535 na Vila de São Vicente já havia mais de três engenhos, ou seja, três
anos depois da fundação do primeiro.
"Desde o alvará de D. Manuel e depois, conforme observou João Lúcio de
Azevedo, o "privilégio, outorgado ao donatário, de só ele fabricar e
possuir moendas e engenhos de água, denota ser a lavoura de açúcar a que se
tenta especialmente em mira". No mesmo sentido eram feitos os regimentos e
as leis referentes à colônia: o de Tomé de Sousa, excluindo o senhor de engenho
das execuções por dívidas; e dos governadores de Pernambuco, assegurando
privilégios aos que edificassem ou reedificassem engenhos; a meia fidalguia
concedida a quantos se tornassem senhores de engenho". (AMARAL, 1958, p.
328).
“Em 1576, Pernambuco exportava cerca de 70 mil arrobas de açúcar e em
1583 a cifra subia a 200 mil arrobas. "Nos princípios do século XVII, diz
de Carli, possuindo o Brasil 200 engenhos, a sua produção era de 25 mil a 35
mil caixas de açúcar de 35 arrobas cada uma. É o tempo áureo do açúcar no Brasil”.
(AMARAL, 1958, p. 329).
Na Europa dos fins do
século XVI até os idos do século XVIII, o açúcar estaria em bastante alta.
Bebidas como chá e café começaram a se disseminar pelos países
europeus, bebidas estas trazidas pelos árabes. Logo, como nem todo mundo
gostava de tomar chá ou café puro, preferiam por açúcar ou misturá-lo com
leite. Além disso, o chocolate começava a ser fabricado na Europa, e demandava muito açúcar para adoçar
o gosto amargo do cacau. Lembrando que chocolate foi um artigo
de luxo por muito tempo, e até mesmo o chá e o café só começaram se popularizar
no final do século XVII em alguns países, mas em outros foi a partir do XVIII.
"Após a vulgarização do chocolate, foi o café, cujo se espalhou desde
1650, um dos produtos que mais contribuiu para a expansão do açúcar, sabido
como é que o consumo de café obriga ao do açúcar em peso pelo menos igual ao
daquele". (SIMONSEN, 1937, p. 173).
"Mas o grande
inimigo, agente incansável de Satanás, era o açúcar. Entrando na República em
quantidades adequadas para reduzir suficientemente o fator custo e chegar às
mesas das camadas médias, o açúcar brasileiro alimentava o apetite dos
holandeses por doces - apetite então já sedimentado. Na década de 1640, havia
mais de cinquenta refinarias de açúcar operando em Amsterdã, e petiscos
tradicionais como waffles, panquecas e poffertjespodiam ser complementados com açúcar polvilhado ou caldas caramelizadas.
Bolos e biscoitos que antes não recebiam nenhum tipo de tempero, a não ser um
pouco de mel ou, nas cozinhas ricas, açafrão e anis, agora podiam incluir
pedaços de frutas cristalizadas ou misturas até então inéditas de gengibre
oriental e melaço ocidental". (SCHAMA, 1992, p. 169).
Para termos uma ideia de quanto o açúcar se tornou valioso entre os
séculos XVI e XVII, pois no XVIII ele começou a entrar em declínio, darei dois
exemplos de fator internacional. O primeiro diz respeito ao fato que em 1580, com a morte do rei de Portugal, D. Henrique I (1512-1580), o trono ficou sem herdeiros, pois o rei era cardeal e não
tivera filhos, e seu antecessor que era seu sobrinho, D. Sebastião, morreu jovem e não teve filhos, logo o trono ficou vago e alguns
candidatos apareceram para disputá-lo, um deles era o rei de Espanha, Filipe II (1527-1598).
Filipe conseguiu ser eleito rei de Portugal, tornando-se Filipe I de
Portugal, passando a ser o rei mais poderoso e rico da Europa e do Ocidente.
Filipe possuía as prósperas minas de prata de Potosí no Alto Peru (atual Bolívia) e agora passara a deter a lucrativa produção açucareira
do Brasil. Por 60 anos Portugal e suas colônias ficaram sob o domínio espanhol,
sendo esse período chamado de União Ibérica (1580-1640).
O segundo exemplo, ocorreou no século XVII, o açúcar se tornaou um bem tão
valioso que isso levou os holandeses a criarem a Companhia das Índias Ocidentais (1621) para tratar de negócios nas Américas e na África, e em 1624 eles atacaram a
cidade de Salvador, capital do Brasil a
fim de tomá-la, embora tenham tido êxito, falharam depois de um ano de
ocupação, contudo, eles não desistiram, e retornaram cinco anos depois. De 1630 a 1654, ou seja, por 24 anos, os holandeses ocuparam parte do Nordeste do
Brasil, controlando a produção açucareira de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio Grande, os principais produtores desse tão cobiçado "ouro
branco".
O canavial e a
escravidão:
Até aqui vimos a trajetória da cana-de-açúcar em se cruzar metade do mundo até
chegar ao Brasil, como esse produto estava em evidência na Europa moderna, daí
ser tão requerido e lucrativo; como os fatores naturais e geográficos favoreceram
o desenvolvimento da cana, impulsionados por uma política econômica monocultora
(chamada de plantation pelos
ingleses), onde se visava grandes latifúndios com mão de obra escrava. Contudo,
como veremos adiante, nem todos os canaviais eram grandes latifúndios, havia
pequenas e médias propriedades que plantavam cana, e as levavam aos engenhos
para serem moídas. Havia uma relação entre esse pequenos e médios
produtores com os senhores de engenho, algo que normalmente não é dito nas
escolas.
"As doações
foram em regra muito grandes, medindo-se os lotes por muitas léguas. O que é
compreensível: sobravam as terras, e as ambições daqueles pioneiros recrutados
a tanto custo, não se contentariam evidentemente com propriedades pequenas; não
era a posição de modestos camponeses que aspiravam no novo mundo, mas de
grandes senhores e latifundiários. Além disso, e sobretudo por isso, há um
fator material que determina este tipo de propriedade fundiária. A cultura da
cana somente se prestava, economicamente, a grandes plantações. Já para
desbravar convenientemente o terreno (tarefa custosa neste meio tropical e
virgem tão hostil ao homem) tornava-se necessário o esforço reunido de muitos
trabalhadores; não era empresa para pequenos proprietários isolados. Isto
feito, a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos onde
se preparava o açúcar, só se tomava rendoso quando realizado em grandes volumes.
Nestas condições, o pequeno produtor não podia subsistir". (PRADO JR,
1981, p. 19).
Prado Jr [1981] e Furtado [2005] apontaram que o trabalho assalariado
nesses latifúndios não era uma condição econômica viável por alguns fatores:
primeiro, a população portuguesa era pequena, e boa parte da qual poderia atuar
na agricultura tinha que permanecer na metrópole, ou se encontrava nas ilhas,
ou estava de serviço no comércio com a África e a Ásia; segundo, seria
necessário contratar trabalhadores de outros países, porém os salários teriam
que ser muito bons para convencer um agricultor deixar sua terra, e mudar-se
com sua família para o outro lado do oceano, para uma região considera
"selvagem" pelos europeus; terceiro, a grande quantidade de mão-de-obra
necessária somada aos custos da viagem, dos salários, levaria a inviabilidade
do projeto, pois se construir um engenho era algo bastante caro na época.
Quarto, os colonos que iam para o Brasil, iam em busca de enriquecimento e glória, para
assim retornarem para seus países. Logo, a solução final e a mais viável foi
apelar para o uso da escravidão. Para se trabalhar nestes latifúndios os portugueses inicialmente
escravizaram os índios, mas estes percebendo a verdadeira intenção dos
portugueses começaram a se rebelar. Os chamados "mansos",
acabaram aceitando trabalhar para os europeus, mas em outros afazeres; já os
mais arredios preferiram fugir para as matas, retornando para suas aldeias, e
passaram a combater os portugueses. Além disso, houve o fato de que as ordens
religiosas começaram a intervir no governo protestando contra o uso de índios
nos canaviais, alegando que eles deveriam ser catequizados e usados em outros
afazeres.
A escravidão indígena no Brasil perdurou até o século XIX, onde centenas
milhares de indígenas foram mortos. Como os índios começaram a ficar contrários
ao trabalho forçado na lavoura, e além disso, não possuíam experiência com
aquele tipo de trabalho, a solução foi trazer escravos da África.
"Em primeiro lugar, à medida que afluíam mais colonos, e portanto
as solicitações de trabalho, ia decrescendo o interesse dos índios pelos
insignificantes objetos com que eram dantes pagos pelo serviço. Tornam-se aos
poucos mais exigentes, e a margem de lucro do negócio ia diminuindo em
proporção. Chegou-se a entregar-lhes armas, inclusive de fogo, o que foi
rigorosamente proibido, por motivos que se compreendem. Além disto, se o índio,
por natureza nômade, se dera mais ou menos bem com o trabalho esporádico e
livre da extração do pau-brasil, já não acontecia o mesmo com a disciplina, o
método e os rigores de uma atividade organizada e sedentária como a
agricultura. Aos poucos foi-se tornando necessário forçá-lo ao trabalho, manter
vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa em que
estava ocupado. Daí para a escravidão pura e simples foi apenas um passo. Não
eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva do Brasil e do estabelecimento
da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e instituíra
firmemente em toda parte". (PRADO JR, 1981, p. 21).
Os africanos já tinham maior experiência com as plantações, a criação de
animais, e além disso, o sistema de escravidão no continente era mais
desenvolvido do que entre os indígenas do Brasil. Outro fator era que os
portugueses já vinham usando africanos nos canaviais em Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe, e até na Madeira e nos Açores, não obstante, o contato entre Portugal
e algumas nações africanas como o Kongo, já possuía algumas décadas
de relação, logo, não foi difícil para os portugueses arranjarem escravos em
África, pois a escravidão já era praticada, e já se tinha ciência dela, embora
o trato com o escravo fosse diferente entre os povos africanos; a escravidão
imposta pelos europeus, se tornou mais abusiva e agressiva. Contudo, embora
houvesse abundância em se conseguir cativos em África, o transporte destes
homens e mulheres não era fácil, e tornava a viagem dispendiosa, perigosa, e
somando-se tudo isso, no final, o preço de um escravo aumentava muito.
Dependendo da idade, do porte físico, da aparência e da localidade, o valor dos
escravos variava.
"O processo de substituição do índio pelo negro prolongar-se-á até
o fim da era colonial. Far-se-á rapidamente em algumas regiões: Pernambuco,
Bahia. Noutras será muito lento, e mesmo imperceptível em certas zonas mais
pobres, como no Extremo-Norte (Amazônia), e até o séc. XIX em São Paulo. Contra
o escravo negro havia um argumento muito forte: seu custo. Não tanto pelo preço
pago na África; mas em conseqüência da grande mortandade a bordo dos navios que
faziam o transporte. Mal alimentados, acumulados de forma a haver um máximo de
aproveitamento de espaço, suportando longas semanas de confinamento e as piores
condições higiênicas, somente uma parte dos cativos alcançavam seu destino.
Calcula-se que, em média, apenas 50% chegavam com vida ao Brasil; e destes,
muitos estropiados e inutilizados. O valor dos escravos foi assim sempre muito
elevado, e somente as regiões mais ricas e florescentes podiam
suportá-lo". (PRADO JR, 1981, p. 23).
Assim como os índios se rebelaram contra a escravidão, os africanos também
fizeram o mesmo. Os quilombose mocambos,
além de algumas revoltas e rebeliões, foram a resposta destes homens e mulheres
a abusiva e nefasta escravidão imposta pelos europeus modernos. Contudo,
os escravos africanos se tornaram a solução para a demanda de mão-de-obra na
colônia. Logo, a escravidão africana e indígena se tornaram o sustentáculo da
economia colonial por quatro séculos. Pois temos que pensar que em terras longe
dos principais portos onde se chegava os escravos africanos, o acesso a estes
era difícil, logo, a opção era usar os índios como escravos. Na Capitania de São Vicente (atualmente o estado de São
Paulo), a escravidão indígena foi superior a africana.
Os tipos de engenho:
Neste caso refiro-me a tipo ao se tratar o quesito da força motriz usada para
girar as engrenagens das moendas, as quais esmagam a cana, e dela jorra o
chamado caldo de cana, o qual por sua vez
consiste na matéria-prima para o fabrico do açúcar, de aguardente e de rapadura (tipo de doce), embora o caldo de cana possa ser consumido puro.
Basicamente os portugueses usaram três tipos de engenho ao longo da história
colonial brasileira, pois o terceiro tipo foi só incluído no Brasil, no século
XIX, na época do Império do Brasil.
·Alçaprensa ou alçaprema: engenho movido a força humana. Geralmente usado nas chamadas engenhocas
(pequenos engenhos), os quais fabricavam rapadura ou aguardente para consumo
interno. Poderiam também fabricar pequenas quantidade de açúcar para uso
caseiro.
·Almanjarra, trapiche, molinote, atafona ou de
bois: engenho movido pela força de animais,
geralmente bois, mas havia casos que se usava cavalos.
·Água ou real:engenho movido pela
força da água, usando-se uma roda d'água. Foram considerados os mais
eficientes, por longos séculos.
·Banguê: engenho movido a
vapor. Começou a ser usado a partir do século XIX. O termo também foi usado
anteriormente para se referir a engenhos que produziam garapa.
·Entrosa: pequeno engenho
movido por três paus. Usava-se também a força humana.
·Gangorra: pequeno engenho de
madeira manual com dois cilindros. Usava-se também a força humana.
·Fogo-morto:termo usado para se
referir a um engenho inoperante.
É importante ressalvar que as palavras, almanjarra, trapiche e banguê
possuem outros significados, daí serem escritas como: engenho de trapiche,
engenho de almanjarra ou engenho-banguê, como forma de referir-se ao uso dessas
palavras com a estrutura dos engenhos de açúcar. Não obstante, dependendo do
lugar, pode-se encontrar outros termos para se referir a força motriz usada nos
engenhos. Aqui fiz uso dos nomes mais comuns usados no Brasil, na Madeira e nos
Açores. "Quem chamou as oficinas, em que se fabrica o
açúcar, engenhos, acertou verdadeiramente no nome. Porque quem quer que as vê,
e considera com reflexão, que merecem, é obrigado a confessar, que são uns dos
principais partos, e invenções do engenho humano, o qual com pequena porção do
Divino, sempre se mostra no seu modo de obrar, admirável. Dos engenhos uns se
chamam reais, outros inferiores vulgarmente engenhocas. Os reais ganharam este
apelido, por terem todas as partes, de que se compõem, e todas as oficinas
perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos canaviais próprios,
e outros obrigados à moenda; e principalmente por terem a realeza de moerem com
água, à diferença, de outros, que moem com cavalos e bois, e são menos providos
e aparelhados; ou pelomenos com menor perfeição, e largueza,
das oficinas necessárias, e com pouco número de escravos, para fazerem como
dizem, o engenho moente e corrente”. (ANTONIL, 1711, p. 13-14).
No
caso do Brasil, os engenhos de água
proliferaram devido a grande disponibilidade de rios e riachos, além de também
não haver inicialmente muito gado, embora que o uso de bois requere-se a
existência de pastos mais vastos e currais maiores para mantê-los.
"O lugar de maior perigo que há no engenho é o da moenda, porque se
por desgraça a escrava que mete a cana entre os eixos, ou por força do sono, ou
por cansada, ou por qualquer outro descuido, meteu desatentamente a mão mais
adiante do que devia, arrisca-se a passar moída entre os eixos, se lhe não
cortarem logo a mão ou o braço apanhado, tendo para isso junto da moenda um
facão, ou não forem tão ligeiros em fazer parar a moenda, divertindo com o
pejador a água que fere os cubos da roda, de sorte que deem depressa a quem
padece, de algum modo, o remédio. E este perigo é ainda maior no tempo da
noite, em que se mói igualmente como de dia, posto que se revezem as que metem
a cana por suas equipações, particularmente se as que andam nesta ocupação
forem boçais, ou acostumadas a se emborracharem. (ANTONIL, 1711, p. 54).
Na casa das caldeiras havia vários tachos como já foi dito, passamos
para conhecê-los, pois eles perfaziam etapa por etapa na fervura do caldo de
cana:
1.Caldeira clarificadora: nos primeiros engenhos misturava-se o caldo com cal, para ajudar a
filtrar as impurezas antes de seguir para a fervura;
2.Caldeira de caldo: tacho onde se recebia o caldo vindo da casa da moenda;
3.Caldeira do meio: tacho que se iniciava
a fervura e se retirava a primeira e a segunda espumas, as quais continham
impurezas como pedaços de folhas, caule, bagaço da cana, etc;
4.Caldeira de melar: continuava-se a fervura e onde se retirava a terceira espuma a qual era
levada para o parol de escuma. Aqui também se fazia a garapa;
5.Parol de melar: após ser fervido e
ter as espumas retiradas, o caldo era posto aqui para ser coado;
6.Parol de coar: recebe o caldo para
ser coado. Usa-se o termo temperar também nessa etapa;
7.Tacha de receber: após ser coado, o caldo era mexido, fervido e decoado (filtrar), onde se
acrescentava água com cinzas para ajudar na filtração das impurezas existentes;
8.Tacha de porta: após o caldo ter suas espumas
retiradas, ter sido coado e ter sido decoado, o caldo continua a ser fervido;
9.Tacha de cozer: o caldo continua a
ser fervido e aqui atinge seu "ponto". Consiste na última etapa de
fervura, pois a partir daqui o chamado melaço será posto para iniciar a etapa
de descanso e esfriamento;
10.Tacha de bater: o melaço é batido com
uma batedeira para atingir o ponto de cristalização, ficando mais consistente e
massudo;
11.Bacia de repartir: Após ser batido, o melaço era desafogado, termo usado para se
referir ao ato de transferir o melaço da taxa anterior para esta, onde seria
levado para resfriadeira onde iria descansar e esfriar;
12.Parol de escuma: local que se depositava a espuma
das três espumas para ser reutilizada.
Aqui expus as
principais etapas, mas dependendo da época, notaremos novas etapas e tachos
usados na filtração do caldo, pois o processo foi recebendo novas técnicas ao
longo da História.
Na casa de caldeira
trabalhavam alguns homens livres chamados decaldeireiros, os quais ficavam responsáveis por verificar o"ponto
do açúcar", ou seja, a temperatura
exata de fervura. Antonil [1711] menciona que nessa seção da fabricação do
açúcar a maioria dos trabalhadores eram homens, mas havia uma escrava chamada
de"calcanha"a qual era responsável por limpar o recinto, acender as candeias,
coletar a segunda e a terceira espuma retirada e voltar a colocá-la em um parol
(um tipo de vasilha), pois essa espuma possuía outras utilidades
Além dos tachos, paróis e caldeiras outras ferramentas e recipientes
usados nessa etapa eram:
·Batedeira: parecido com a escumadeira, mas
sem os furos. Era usado para bater no melaço após este terminar de ser fervido.
·Caneca:recipiente usado para
passar o caldo de um tacho para o outro.
·Cinzeiro: tanque quadrangular onde
se misturava água quente com cinzas para ser usado na decoada, na taxa de
receber.
·Colher: uma grande colher com
furos, usado para mexer o melaço após a fervura.
·Concha: uma concha de ferro
de cabo longo, usada para se provar o caldo.
·Escumadeira: tipo de colher com vários furos,
usada para se extrair a espuma.
·Fôrma: vaso de barro onde se
colocava o melaço para iniciar a purgação.
·Passadeira:grande colher usada
para transferir o caldo fervente para o tacho seguinte.
·Picadeira: lança de ferro usada
para se retirar os restos de melado que ficavam grudados nos tachos, paróis e
caldeiras.
·Pomba ou reminhol:grande colher usada para retirar o melaço da última taxa. Era usado
também para se acrescentar água na decoada.
·Resfriadeira: tanque onde o melaço descansava e
esfriava para depois ser depositado nas fôrmas.
Tais equipamentos e recipientes foram comumente usados na produção do
açúcar, contudo, quando chegamos ao século XIX já encontramos outros utensílios
e máquinas como centrífugas, filtradores, espumadores, evaporadores, etc.,
usados neste processo, reflexos da Revolução Industrial do século XVIII.
Após a fervura, o
caldo antes inicialmente de coloração verde claro ou amarelada, após ser
fervido ele se torna o que se chama de mel-de-cana,mel-de-engenho,mel-de-furo ou melaço. Uma substância amarronzada rica em sacarose, carboidratos, ferro,
etc. O melaço além de ser usado para fazer açúcar também é usado para se fazer
cachaça, rapadura, rum, caldos, etc.
Funções:
Feitor de moenda:era o responsável por fiscalizar a colheita, o transporte da cana e sua
moedura. Enquanto a cana era moída ele deveria ficar atento para que as
escravas ou escravos não se acidentassem no processo, como também deveria
controlar o processo para evitar que houvesse caldo em demasia, pois poderia
acabar estragando enquanto aguardava iniciar o processo de fervura. Antonil
[1711] falara que o feitor de moenda tinha um salário que variava de quarenta a
cinquenta mil réis ao ano, mas vale lembrar que isso era um salário do início
do século XVIII, não significa que o salário fosse o mesmo ao longo do
tempo.
·Feitor ou capataz:era responsável por vigiar e punir os escravos, assim como proteger a
fazenda, os canaviais e os roçados e manter o controle dos escravos, evitando
que brigassem, fugissem, ou ficassem ociosos.
·Mestre de açúcar: era o responsável por verificar a
qualidade do solo e a localização para o plantio da cana, devia
saber distinguir onde se brotava cana de melhor qualidade e de
menor qualidade, pois dependendo do solo e da quantidade de água recebida havia
variações. Na casa das caldeiras, era o responsável por manter todos os
funcionários trabalhando adequadamente, e manter um controle de qualidade, pois
as vezes o caldo teria que ser fervido por mais tempo, ou ser coado ou decoado
novamente. Na casa de purgar também era responsável por avaliar o trabalho dos
escravos e empregados nesse setor. Em suma, o mestre de açúcar controlava a
administração do fabrico do açúcar. Nos grandes engenhos Antonil [1711] fala
que o salário do mestre de açúcar era em torno de 130 mil réis ao ano, mas
podia ficar na casa dos 100 mil réis ao ano.
·Banqueiro ou soto-mestre: era um dos ajudantes do mestre de açúcar. Quando esse se ausentava, era
o banqueiro o responsável por manter o controle e a eficiência na produção de
açúcar na casa das caldeiras. Sua responsabilidade era bastante grande. O banqueiro substituía o
mestre de açúcar pelo turno da noite, e era auxiliado pelo ajuda-banqueiro
ou soto-banqueiro. O banqueiro podia receber entre 30 a 40 mil réis ao
ano.
·Ajuda-banqueiro ou soto-banqueiro: era o ajudante do banqueiro, possuía também uma
grande responsabilidade no processo de fabricação, pois teria que se
manter atento todo tempo para evitar atrasos, perda de matéria-prima e
acidentes. Antonil nos fala que tais cargos eram ocupados necessariamente não
por gente livre, mas poderiam ser ocupados por algum escravo ou mestiço. Ele
também era responsável por supervisionar o envio dos pães de açúcar para a casa
de purgar. No caso do empregado ser um escravo ou um mestiço que também sofria
com status de ser um escravo, mesmo tendo uma mãe ou pai branco, eles as vezes
não recebiam salário, mas recebiam alguma espécie de recompensa.
·Caldeireiro e tacheiro: trabalhavam nas caldeiras e tachos cuidando em se controlar a
temperatura de fervura e o processo de purificação do caldo. Eram responsáveis
por ver o "ponto", temperatura exata na qual o caldo estaria bem
fervido.
·Purgador: trabalhava na purificação do
açúcar na casa de purgar. Era o responsável por verificar como seguia o
processo de purgação do açúcar nos dias que ele residia no recinto. Também
tinha que verificar a qualidade do barro ou argila que seria usado no processo
de purgação, auxiliava na organização dos pães nos andaimes. Deveria zelar pela
organização e limpeza do recinto e ordenar a coleta do melaço nos jarros para
ser armazenado ou reutilizado. Antonil conta que o salário de purgador variava
de acordo com a quantidade da produção. Se se produzissem 4 mil pães numa leva,
ele receberia 50 mil réis anualmente, mas se a produção fosse menor, receberia
de forma proporcional.
·Caixeiro de engenho:era o responsável por pesar o açúcar antes deste ser encaixotado e
marcado. Também cuidava de separar e contabilizar a produção do senhor de
engenho, dos lavradores e de repassar o dízimo para a Igreja. Também eram
incumbido de supervisionar o carregamento do açúcar nas caixas, e até mesmo
auxiliar no carregamento, verificava se todas as caixas foram devidamente
marcadas, e até mesmo supervisionava o transporte até o porto, como verificar o
embarque do produto. Antonil falara que dependendo do tamanho do engenho e da
sua produção, o caixeiro poderia receber de 30 a 50 mil réis por ano.
·Caixeiro da cidade:diferenciava-se do caixeiro de engenho, pois atuava mais como um
contador, contratador, procurador e depositário, cuidando das finanças do engenho,
das negociações, da contratação dos navios, da contratação dos compradores,
etc. Recebia um salário anual em torno de 40 a 50 mil réis.
Tipos de açúcar:
Já foi mencionado aqui que havia alguns tipos de açúcar, pois quando se
dividia as "caras" do pão-de-açúcar, cada "cara" possuía
uma qualidade diferente, e além disso, o próprio açúcar mascavo também possuía
seus tipos. Existem distintas nomenclaturas para tratar dessa tipologia
sacarina, contudo, exporei aqui os termos usados pelos portugueses, pois os
espanhóis, italianos, holandeses, franceses, ingleses, etc., usam outras
terminologias.
1) Açúcar branco:Embora seja parecido
com o atual açúcar que normalmente usamos, na Idade Moderna havia algumas
diferenças. Antonil [1711] dizia que o açúcar branco possuía algumas
classificações referentes a sua qualidade:
·Fino: era o mais branco,
fechado e pesado, provinha da primeira "cara" do pão-de-açúcar. Era
considerado o de melhor qualidade.
·Redondo:era menos fechado e
pesado, provinha normalmente da segunda "cara", e era considerado de
segunda qualidade.
·Baixo: era de uma cor
amarronzada, provinha da terceira "cara", embora a cor, ainda era
considerado de qualidade relativa, mas inferior.
·Branco batido: era feito a partir do
melaço escorrido durante a fase de purgação, onde tal melaço era cozido
novamente e era batido. Antonil diz que as vezes ele se tornava branco e
bem encorpado, daí ser chamado de "branco batido".
O açúcar branco do tipo fino, redondo e baixo eram chamados de açúcar macho, pois eram bem purgados, puros e de excelente qualidade.
2) Açúcar mascavo:era chamado também de mascavado, pése cabucho. Era considerado de
menor qualidade se comparado com o açúcar branco. O açúcar mascavo como vimos é
de coloração amarronzada, possui uma maior quantidade de melaço, não é bem
purgado e nem refinado. Era usado no preparo de alimentos, e até na fabricação
de rapadura, garapa, cachaça, rum, etc.
·Macho: resultante das sobras do açúcar
macho. Quando o açúcar era retirado da forma, ele tinha a sua crosta raspada, o
que lhe separava do açúcar branco, e essa crosta era o açúcar mascavo.
·Batido:resultante das sobras
do açúcar branco batido.
·Mel: açúcar mascavo feito
do mel da purga. Era usado também para fazer o mascavo batido ou para se fazer
garapa e cachaça.
·Remel:resultante do mel da
purga do batido branco. Se fosse batido poderia virar mascavo batido, e também
era usado para se fazer garapa e cachaça.
3) Açúcar de escuma: era feito a partir das espumas
resultantes da fase de fervura do caldo. Era de coloração escura, usado para
fazer garapa, como também dado de alimento para os escravos e os animais.
·Neta: feito com a primeira
espuma.
·Rescuma: feito com a segunda
espuma.
·Nata: feito com a terceira espuma. Era
batido e cristalizado.
4) Açúcar por região: Gaspar Barléu
escrevendo no século XVII assinalou que dependendo do lugar de onde vinha o
açúcar esse recebia certos nomes. Aqui temos um outro tipo de
nomenclatura.
·Madeira: proveniente da ilha da Madeira.
·Canárias: proveniente das Canárias,
arquipélago de posse dos espanhóis.
·Meli: proveniente de uma pequena ilha
na costa ocidental da Índia, sob o controle dos portugueses.
·São Tomé: proveniente da ilha de São Tomé,
possessão portuguesa na África. Barléu nos conta que esse açúcar era de qualidade
inferior, e era usado para se fazer xaropes, conservas, remédios, etc.
·Antilhas: proveniente das
Antilhas no mar do Caribe. Nesse caso, era produzido pelos espanhóis,
holandeses ou franceses, dependia de que ilha provinha.
·Açores: proveniente dos Açores.
·Cabo Verde:proveniente do Cabo
Verde.
Havia outro lugares, mas mencionEI estes mais importantes. Contudo, não
se encontra a nomenclatura de açúcar brasileiro ou Brasil nos livros que usei
para fazer este texto.
5) Outros tipos de açúcar:
·Misturado: era formado a partir
da mistura de diferentes açúcares que eram transportados em caixas de forma
inadequada.
·Panela: o caldado que
escorria no processo de fervura era coletado em panelas e não era purgado. Era
de baixa qualidade e de coloração escura. Por ser vendido em panelas recebeu
esse nome.
·Cândi ou cande: açúcar branco
refinado e cristalizado, usado para adoçar bebidas, alimentos e preparar
medicamentos.
Aqui apresentei alguns tipos de açúcar e suas nomenclaturas usadas entre
os séculos XV e XVIII, já nos séculos XIX e XX vemos novas nomenclaturas, mas
como o foco aqui é tratar da produção açucareira no período colonial
brasileiro, me reterei a estes exemplos.