24/10/2015

Triste Fim de Policarpo Quaresma

 
 

 

                                                                Contexto histórico

O período a que pertence o Pré-Modernismo coincidiu com o início do re­gime republicano (a República da Espada, de Deodoro a Floriano) e também com a sua estabilização, liderado politicamente por dois estados (antigas províncias na época do Império): São Paulo e Minas Gerais. Era a chamada política do café com leite (iniciada com o governo civil de Prudente de Moraes).

Perdurando por mais de trinta anos, isto é, de 1894 a 1930, a República Velha ou oligárquica destacou-se por ser um período de grande desenvolvimento, mas também de inúmeras revoltas, repartindo assim o país em dois Brasis.

Nas regiões Sudeste e Sul, o trabalho foi intensificado pela imigração (ita­liana e alemã, por exemplo), substituindo a mão de obra escrava e impulsionando cidades como São Paulo, que na época imperial, não passava de 35.000 habitan­tes; já o Nordeste, região massacrada por secas e pela política dos coronéis, não tinha a mesma sorte. Devido a essa situação, líderes como Antônio Conselheiro e Padre Cícero convenceram o povo a se revoltar contra qualquer tipo de des­mando, surgindo assim as grandes revoltas, como a Guerra de Canudos. Mas não podemos nos esquecer também de Lampião, Antônio Silvino e Corisco, líderes do cangaço, que aterrorizaram o Sertão Nordestino.

Mas essas revoltas não foram somente exclusividade da região nordestina. No Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro) e no Sul (Santa Catarina), o inconfor­mismo também se fez presente.
No Rio, as pessoas se revoltaram contra a vacinação obrigatória do médi­co sanitarista Oswaldo Cruz. Da Marinha, surgiu a Revolta da Chibata, isto é, marinheiros exigiam a extinção do castigo corporal, um dos temas tratados por Adolfo Caminha (1867-1897) em seu romance O Bom Crioulo. Já em São Paulo, greves operárias, decorrentes da Revolução Bolchevique de 1917, respaldadas pela formação dos sindicatos, exigiram melhores condições para o trabalhador.
E foi nesse clima de inconformismo sociopolítico que surgiu a figura de Lima Barreto, escritor extremamente crítico.
 
Analisando
 
 
 
Coincidindo com a chamada belle époque, o Pré-Modernismo não é propria­mente uma escola literária, e sim um período eclético, por apresentar autores de características diferentes. Onome foi sugerido pelo crítico modernista Tristão de Ataíde (1893-1983). Ao estudar os autores em destaque entre os anos de 1902 e 1922, percebeu que entre eles não havia uma unidade para a constituição de uma escola literária.
Para efeito didático, o Pré-Modernismo teve o seu início oficial em 1902, com a publicação das obras Canaã, de Graça Aranha, e Os sertões, de Euclides da Cunha, estendendo-se até 1922 com a Semana de Arte Moderna, marco oficial do Modernismo brasileiro.

Mas por que Pré-Modernismo?

Segundo Tristão de Ataíde, pelo menos uma característica podia ser encon­trada entre os maiores representantes do período, característica esta que, de certa forma, anteciparia o Modernismo brasileiro: a preocupação com os problemas sociais e culturais do Brasil.

Graça Aranha (1868-1934), após conviver com os alemães e os seus des­cendentes na cidade capixaba de Porto do Cachoeiro, publicou Canaã, criando o primeiro romance de ideias da literatura brasileira. Nele, o autor explorou o duelo ideológico entre dois alemães, Milkau e Lentz. Oprimeiro pregando a igualdade de todas as raças; o segundo, a superioridade da raça ariana.

Euclides da Cunha (1866-1909), após participar como correspondente de guerra do jornal O Estado de S. Paulo, anotou em sua caderneta-de-campo dados suficientes para a composição da obra Os sertões, cujo tema, a Guerra de Canudos, era uma “desculpa” para o autor analisar o Brasil da época.

Lima Barreto (1881-1922), um dos mais combativos autores do período, explorou, por exemplo, o nacionalismo exacerbado (xenofobia) em Triste fim de Policarpo Quaresma, e o preconceito racial e a perseguição na imprensa em Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Monteiro Lobato (1882-1948) gerou polêmica ao criar o personagem Jeca Tatu, simbolizando o atraso e a miséria do sertanejo, na obra Urupês. Já em Cidades mortas, Lobato denunciou a decadência das cidades cafeicultoras do Vale do Paraíba.

Entretanto, em obras desses autores, encontramos também outras carac­terísticas adotadas mais tarde pelos modernistas como forma de afirmação da nossa nacionalidade. Por exemplo: a preocupação com uma língua coloquial próxima da “brasileira”, presente em obras de Lima Barreto, e a redescoberta de nosso folclore por Monteiro Lobato.
Ainda fazem parte do Pré-Modernismo poetas como Augusto dos Anjos (1884-1914), Raul de Leôni (1884-1926) e José Albano (1882-1923) que, em suas poesias, não se preocuparam com questões sociais e políticas.
 


 
Lima Barreto
 
O mulato Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 13 de maio de 1881, exatamente sete anos antes da abolição dos escravos.
Filho do tipógrafo João Henriques Barreto, conhecido por traduzir o manual de tipografia adotado por muitos dos profissionais do ramo, e de uma professora primária, dona Amália, com quem aprendeu as primeiras letras.

Estudante de engenharia na Politécnica do Rio, interrompeu o curso para trabalhar, já que precisava sustentar seus irmãos mais novos, Angelina, Carlindo e Eliézer, pois o seu pai havia enlouquecido e sua mãe morrido.

Aposentou-se ainda jovem da função de amanuense (pequeno funcioná­rio público) devido ao alcoolismo e por apresentar problemas mentais (quando bêbado, tinha alucinações, vendo-se perseguido por animais, pelo povo e pela polícia). Por esse motivo, foi, por duas vezes, internado no Hospital dos Aliena­dos, onde escreveu a obra O cemitério dos vivos.

Sobre a loucura, a fala do narrador de Triste fim de Policarpo Quaresma parece ser a própria voz de Lima Barreto:

 

Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente.”

(Triste fim de Policarpo Quaresma)

 

Lima Barreto foi um jornalista atuante e polêmico, chegando a militar na imprensa maximalista, influenciado que foi pela Revolução Russa de 1917 e por Karl Marx (1818-1883), teórico do socialismo e revolucionário alemão.
Sem apoio dos intelectuais ricos e brancos, com exceção de Monteiro Lobato, que publicou um de seus romances, não conseguiu atingir a fama com que tanto sonhava, vindo a morrer aos 41 anos, pobre e rejeitado, no subúrbio carioca, em 1922.
Mas Lima Barreto fez escola, influenciando inúmeros autores contempo­râneos, dentre eles, João Antônio, autor de Malagueta, perus e bacanaço; Rubem Fonseca, autor de Feliz ano novo, e o teatrólogo Plínio Marcos, autor de Dois perdidos numa noite suja.
 

Cronologia das obras
 
Romances
1909 – Recordações do escrivão Isaías Caminha
1915 – Triste fim de Policarpo Quaresma

1915 – Numa e Ninfa

1919 – Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá

1948 – Clara dos Anjos

Contos

1920 – Histórias e sonhos

1952 – Outras histórias e contos argelinos

Sátira e humorismo

1912 – Aventuras do Dr. Bogoloff

1923 – Os bruzundangas

1953 – Coisas do reino de Jambon

Artigos, crônicas e crítica

1923 – Bagatelas

1953 – Feiras e mafuás

1953 – Vida urbana

1956 – Marginália

1956 – Impressões de leitura

1956 – Correspondência

Memórias

1953 – Diário íntimo

1953 – O cemitério dos vivos

 

Se repararmos bem nas datas de nascimento e morte de Lima Barreto (1881-1922), veremos que elas coincidem com o início do Realismo-Naturalismo e o do Modernismo no Brasil, isto é, com a publicação das obras Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O mulato, de Aluísio Azevedo, romances que introduzem a época realista no Brasil, em 1881, e a Semana de Arte Moder­na, marco oficial de nosso Modernismo, em 1922. Dois momentos em que seus autores fizeram da literatura uma poderosa arma de combate social assim como o próprio Lima Barreto com seus romances e contos.

Um dos três prosadores que retrataram a cidade do Rio de Janeiro – os outros dois foram Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), das Memórias de um sargento de milícias, e Machado de Assis (1839-1908), das Memórias póstumas de Brás Cubas –, Lima Barreto, mulato do subúrbio, não se deixou intimidar, crian­do uma gama de personagens, divididos, basicamente, em dois grupos distin­tos: o dos hipócritas e, em número bem menor, o dos idealistas. Ao primeiro, enquadram-se os militares incompetentes, políticos corruptos, ignorantes que se passam por sábios, moças casadoiras, dentre outros; ao segundo, os chamados quixotescos que, numa luta desigual, são alvos de chacotas e perseguições. Den­tre eles, podemos destacar Policarpo Quaresma, Ricardo Coração dos Outros e Olga, de Triste fim de Policarpo Quaresma; Raimundo Flamel, de A nova Califórnia; Isaías Caminha, de Recordações do escrivão Isaías Caminha, este o alter ego de Lima Barreto. Mas o interessante é que encontramos traços autobiográficos, não só nessa obra, mas em várias outras.

Lima Barreto, mulato como Machado de Assis, teve uma trajetória oposta a do autor de Dom Casmurro. Vindo de uma família remediada (chegou a cursar por algum tempo engenharia), morreu desprezado pelos intelectuais de sua época; enquanto Machado de Assis, de família humilde, autodidata (estudou somente até o quarto ano primário), conheceu em vida a fama de maior escritor brasileiro. Mas o que levou Lima Barreto (hoje um dos principais nomes de nossa literatura) a essa rejeição? Uma das causas foi a linguagem adotada em sua prosa (muito próxima da almejada pelos primeiros modernistas), com vícios e com uma coloquialidade despudorada, que deixou os chamados “puristas” da língua portuguesa inconformados. Um desses “puristas”, ou seja, aqueles escritores que só admitiam a linguagem culta (ou correta, gramaticalmente), foi Coelho Neto (1864-1934), o “príncipe dos prosadores brasileiros” e um dos mais conhecidos autores da época, hoje praticamente esquecido.

Quando Mário de Andrade (1893-1945) propôs uma “língua brasileira” como marca de uma nova nacionalidade, disse que, para isso ser possível, era preciso, primeiramente, “descoelhonetizar” a língua portuguesa, num declarado repúdio a Coelho Neto e ao grupo de acadêmicos adeptos daquela última flor do Lácio, inculta e bela, como escreveu Olavo Bilac (1865-1918), poeta parnasiano de “sonetos bem rimadinhos, penteadinhos, lambidinhos”, segundo Lima Barreto.

Quanto ao espaço retratado em sua prosa, Lima Barreto, ao contrário de Machado de Assis, explorou o mesmo de Manuel Antônio de Almeida: o subúr­bio carioca.

 

 
 
A obra
 
Tendo como um dos motivos centrais a Revolta da Armada (batalha em que o ministro da Marinha do marechal Floriano Peixoto se rebelou e, com seus marinheiros, tentou tomar o poder), Lima Barreto, no Triste fim de Policarpo Quaresma, traçou um quadro crítico e satírico da chamada Velha República (ou a República dos Marechais). Abaixo, podemos perceber o descaso com que o narrador tratou tal batalha:

E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapa­lhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer, chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: o senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.

Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu.

Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o ‘Aquidabã’! Lá vai”. E dessa maneira, a revolta ia correndo familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade.

 

Foco narrativo

 

Ao adotar o foco narrativo em 3ª pessoa e dotado de onisciência, isto é, aquele que sabe de tudo, até mesmo do que se passa na cabeça de seus persona­gens (e para isso, o narrador se vale do discurso indireto livre, como podemos perceber no trecho abaixo), Lima Barreto construiu um narrador que nutria franca antipatia pelo marechal Floriano e por todos aqueles que o rodeavam, com exce­ção do próprio Quaresma, por quem o narrador tinha uma simpatia declarada.

Desde os dezoito anos, que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas de tupi, do folclore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!

 

Espaço

 

Como vimos, Lima Barreto explorou o subúrbio carioca, e não seria di­ferente em Triste fim de Policarpo Quaresma, que, já nos primeiros capítulos, nos dá a localização exata de onde mora o protagonista: o bairro suburbano de São Cristóvão. Há outros espaços retratados, como o sítio Sossego, o hospício, o cárcere. A seguir, uma interessante descrição dos subúrbios cariocas, retirada do capítulo “Espinhos e flores”, de Triste fim de Policarpo Quaresma. Nela, podemos perceber a mescla de casas e pessoas, numa profusão de classes sociais:

Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa cousa em matéria de edificação da cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influi decerto para tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções.

Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imagi­nado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado.

(...)

Vai-se por uma rua a ver um correr de chalets, de porta e janela, parede de frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara uma casa burguesa, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados. Passada essa surpresa, olha-se acolá e dá-se com uma choupana de pau a pique, coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga uma população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e colunas de estilo pouco classificável, que parece vexada e querer ocultar-se, diante daquela onda de edifícios disparatados e novos.

Não há nos nossos subúrbios cousa alguma que nos lembre os famosos das grandes cidades europeias, com as suas vilas de ar repousado e satisfeito, as suas es­tradas e ruas macadamizadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e desleixados.

(...)

Há pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; há operários de tamancos; há peralvilhos à úl­tima moda; há mulheres de chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa.

 

Tempo

 

A história se passa durante o governo do marechal Floriano Peixoto e a Batalha da Armada (acontecida em 1893), ou seja, época da chamada República Velha, entre o final do século XIXe o XX. E é durante esse período que Lima Barreto procurou retratar, de maneira detalhada e com profunda visão satírica, os costumes sociais e políticos do Rio de Janeiro.

 

Linguagem

 

Também já vimos que Lima Barreto não agradou nem um pouco aos intelec­tuais que ditavam a “boa” literatura da época ao adotar uma linguagem coloquial (adquirida com a experiência de jornalista), com os seus vícios linguísticos, mas recheada de humor, ironia e autenticidade, como podemos notar neste trecho:

Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da Pátria.16 Lima Barreto

Lima Barreto antecipou o “português-macarrônico” inventado pelo poeta Juó Bananére (1892-1933) e utilizado por Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) em obras como Brás, Bexiga e Barra Funda. De Triste fim de Policarpo Quaresma, reti­ramos a seguinte passagem:

– O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende o senhor?

– Como?

– Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em diante falemos tupi.

Tutti?

– Todos os brasileiros, todos.

Ma che cousa! Não é possível?

– Pode ser. Os tcheques têm uma língua própria, e foram obrigados a falar alemão, depois de conquistados pelos austríacos; os lorenos, franceses...

Per la madonna! Alemão é lingua, agora esse acujelê, ecco!

Acujelê é da África, papai; tupi é daqui.

Per Bacco! É o mesmo... Está doido!

– Mas não há loucura alguma, papai.

– Como? Então é cousa de um homem, bene?

– De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.

Non capisco.

– É uma ideia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...

 

Temas

 

Ao explorar a xenofobia (aversão a aspectos de culturas estrangeiras) como pano de fundo para tecer uma dura crítica ao comportamento de uma sociedade hipócrita e pseudointelectual, Lima Barreto construiu uma das mais instigantes obras da literatura brasileira, que o colocou entre os maiores escritores de todos os tempos, apesar de, na época, não ter obtido tal projeção.

Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios. Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre todos os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns quilômetros ao Nilo e era com este rival do “seu” rio que ele mais implicava. Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral, calmo e delicado, o major ficava agitado e malcriado, quando se discutia a extensão do Amazonas em face da do Nilo.

Podemos destacar vários outros temas como:

•Crítica ao academicismo típico dos poetas parnasianos:

A réclame já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre ele e a sua obra, a estava certa. Era difícil encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em cousas francesas...

•Crítica à tradicional burocracia de nossos órgãos públicos.

Éinteressante ressaltarmos que, assim como Policarpo Quaresma, Lima Barreto também se aposentou por invalidez (época em que era amanuense), tendo conhecido de perto o sistema lento de nossas repartições:

Atualmente era ele o encarregado de tratar da aposentadoria do seu antigo dis­cípulo. É um trabalho árduo, esse de liquidar uma aposentadoria, como se diz na gíria burocrática. Aposentado o sujeito, solenemente por um decreto, a cousa corre uma dezena de repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave do que a gravidade com que o empregado nos diz: ainda estou fazendo o cálculo; e a cousa demora um mês, mais até, como se se tratasse de mecânica celeste.

•Opreconceito não só racial, mas social e às pessoas sem formação acadê­mica e também àqueles de formação semissuperior. Não podemos nos esquecer de que o próprio Lima Barreto era mulato e sem formação superior.

Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que merecera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era formado, para quê? Pedantismo!”

Aborrecia-se com o rival, por dous fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo: por causa das suas teorias.

O marido tinha resistido muito em acompanhá-la até ali. Não lhe parecia bem aquela intimidade com um sujeito sem título, sem posição brilhante e sem fortuna. Ele não compreendia como o seu sogro, apesar de tudo um homem rico, de outra esfera, tinha podido manter e estreitar relações com um pequeno empregado de uma repartição secundária, e até fazê-lo seu compadre!

•Crítica à falta de apoio do governo ao homem do campo.

Tema também tratado, duramente, por Monteiro Lobato ao criar os persona­gens Jeca Tatu e Zé Brasil. A seguir, o diálogo entre Olga e Felizardo, empregado de Policarpo Quaresma no sítio Sossego:

– É grande o sítio de você?

– Tem alguma terra, sim senhora, “sá dona”.

– Você por que não planta para você?

– “Quá sá dona!” O que é que a gente come?

– O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.

– “Sá dona ta” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e então? “Quá, sá dona”, não é assim.

Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse:

– Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta... isso é bom para italiano ou “alamão”, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...

 

 Enredo

 

A obra Triste fim de Policarpo Quaresma divide-se em três partes. A primeira trata diretamente das questões nacionalistas do major Policarpo Quaresma e da sua vida de funcionário exemplar. A segunda, da vida de Quaresma em seu sítio Sossego e a tentativa de sobreviver cultivando a terra, além de seu alistamento para, ao lado do marechal Floriano Peixoto, participar da batalha da armada. A terceira trata propriamente da batalha, com a vitória do Exército sobre os ma­rinheiros que se rebelaram, tentando assumir o governo, e do final trágico do major Quaresma, fuzilado por ser considerado um traidor da Pátria. Mas vamos ao enredo:

Policarpo Quaresma, subsecretário do Arsenal de Guerra, é um pacato cidadão (apesar de sua patente de major, não era militar), burocrata exemplar, morador de São Cristóvão, subúrbio carioca. Homem metódico e de poucos amigos, desde os vinte anos de idade estudava o Brasil, tornando-se um verdadeiro xenófobo (daí sua característica quixotesca). Sabia a sua história e geografia; a sua literatura e música; só apreciava pratos tipicamente nacionais; só se vestia com roupas aqui fabricadas. Irritava-se, por exemplo, quando alguém supervalorizava algo estrangeiro em detrimento do nacional. Nessa sua obsessão nacionalista, pretende reformar os nossos costumes a partir do cumprimento, típico dos índios tupinambás:

Desde dez dias que se entregava a essa árdua tarefa, quando (era domingo) lhe bateram à porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas não apertou a mão. Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho. A irmã correu lá de dentro, o Anastácio também, e o compadre e a filha, pois eram eles, ficaram estupefatos no limiar da porta.

– Mas que é isso, compadre?

– Mas, meu padrinho...

Ele ainda chorou um pouco. Enxugou as lágrimas e, depois, explicou com a maior naturalidade:

– Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das cousas da nossa terra. Queriam que eu apertasse a mão... Isto não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando encontramos os amigos, era assim que faziam os tupinambás.

Mas Quaresma caiu no descrédito daqueles que conviviam consigo ao começar a ter aulas de violão com Ricardo Coração dos Outros, já que violão era instrumento de vadios, e ao propor à câmara dos deputados a troca da língua ofi­cial (do português para o tupi-guarani). Policarpo Quaresma passou a ser alvo de deboches e chacotas, principalmente na imprensa. A sua situação piorou quando, por engano, enviou um relatório ao seu superior (quando substituíra o secretário), escrito em tupi-guarani. Foi internado num hospício, onde permaneceu por seis meses, recebendo visitas apenas de sua irmã Adelaide; de sua afilhada Olga, uma das únicas pessoas por quem Quaresma nutria admiração, pois era diferente das moças casadoiras e submissas da época, e de seu compadre Vicente Coleoni. Após receber alta, comprou um sítio no arrabalde do Rio de Janeiro, no município de Curuzu, para viver do cultivo da terra. Planejou uma reforma agrícola, por isso.

não mediu esforços para adquirir todo o material para a empreitada: animais, máquinas, livros etc. Entretanto, encontrou inúmeras dificuldades, principalmen­te em combater as saúvas que devastavam as plantações (vale aqui lembrarmos de uma famosa frase de Macunaíma: Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são) e a peste que consumiu com a metade de sua criação de patos, gansos e galinhas. Além disso, temos um interessante retrato da situação campesina: a falta de apoio aos homens do campo, fazendo com que vivessem em extrema pobreza. Ébom ressaltarmos que essa questão fora brilhantemente tratada por Monteiro Lobato ao criar o Jeca Tatu. Abaixo o trecho em que Olga, ao visitar o padrinho em seu sítio, espantou-se com tanta pobreza no campo:

O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido de gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas de preguiça, trabalham relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos plantam um pouco, algumas cousas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!...

Sem intenção nenhuma, acaba sendo envolvido na rixa política do pequeno município, chegando a receber represálias do chefe político.

Ao saber dos conflitos que originaram a Batalha da Armada, enviou ao ma­rechal Floriano Peixoto um telegrama (“Peço energia. Sigo já”.) para, ao seu lado, combater os marinheiros revoltosos, aquartelados na Baía da Guanabara, que, sob o comando do ministro da marinha do marechal, tentavam tomar o governo. Tratada de uma maneira satírica e debochada, a Batalha da Armada foi vista com descaso pelo narrador, numa crítica à política dos militares. Observemos abaixo que o patriotismo do contra-almirante Caldas ia até onde lhe era interessante sê-lo:

Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora o governo não lhe tinha dado cousa alguma. O seu patriotismo se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia vice-almirante. É verdade que o governo ainda não organizara a sua esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não comandaria nem uma divisão. Uma iniquidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma energia moça.

Com a vitória do Exército, o major Policarpo Quaresma foi destacado para a função de carcereiro, isto é, cuidar dos prisioneiros de guerra na Ilha das Enxadas. Mas ao descobrir que muitos desses marinheiros estavam sendo levados para o fuzilamento, Quaresma escreveu uma carta ao “marechal de fer­ro” – por quem já havia se decepcionado ao mostrar-lhe o seu memorial para a prática agrícola e ser chamado de visionário – criticando tal atitude, passando, então, a ser considerado um traidor da Pátria. Prisioneiro na Ilha das Cobras, Quaresma teve a total consciência de que tudo o que fizera pelo Brasil fora em vão. De nada valera estudar o País, em todos os seus aspectos. Tudo indicava que ele seria também fuzilado. No último parágrafo, Olga, que em vão tentara uma audiência com o marechal Floriano Peixoto, na esperança de interceder pelo seu padrinho, constatou a fugacidade das coisas, e esperançosa em dias melhores, seguiu, serenamente, ao encontro de Ricardo Coração dos Outros:

Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por essas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.

 

PERSONAGENS

 

OS IDEALISTAS

 

Policarpo Quaresma

Personagem quixotesco, decorrente de sua xenofobia, era conhecedor profundo de literatura brasileira (possuía uma biblioteca com mais de trinta mil títulos), história, geografia e da fauna e flora brasileiras. Pacato cidadão, residente no subúrbio carioca, subsecretário do Arsenal de Guerra, era respeitado por aque­les que o conheciam, mas, ao propor a mudança da língua oficial (do português para o tupi-guarani), caiu no descrédito popular, tornando-se alvo de pilhérias e chacotas. Após sua permanência internado em um hospício, tentou viver da terra, em seu sítio Sossego, mas não conseguiu. Alistou-se para lutar ao lado do marechal Floriano na famosa Batalha da Armada, que foi ironicamente retratada pelo narrador. Após a vitória, encarregou-se de tomar conta dos prisioneiros, mas, ao saber que vários desses marinheiros estavam sendo fuzilados, escreveu ao marechal criticando tal atitude. Foi preso e fuzilado.

Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor à Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que o Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa.
 

Ricardo Coração dos Outros

 

Seu nome é uma paródia de Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra que se envolveu em batalhas e conquistas durante o século XII. Há estudiosos que acreditam ser o personagem uma homenagem ao poeta e compositor popular Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), autor, entre outras, da modinha Luar do Sertão. Era professor de violão do major Quaresma. Alvo de forte preconceito, o violão – tido como ocupação de vadios e vagabundos – teve lugar de destaque na obra, já que Lima Barreto tentou fazer dele o símbolo do instrumento nacional.

A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o padre Caldas, que teve um auditório de fidalgos.

– Major, o violão é o instrumento da paixão. Precisa de peito para falar... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor, como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...

Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo ele fremindo de paixão pelo instrumento desprezado.

 

Olga

 

Afilhada de Policarpo Quaresma, Olga, apesar de ter se submetido a um casamento por conveniência, era diferente das moças da época. Nutria certo ide­alismo que a colocava no minguado grupo a que pertencia o major Quaresma, por quem tinha imensa admiração.

Havia entre os dous uma grande afeição. Quaresma era um tanto reservado e o vexame de mostrar os seus sentimentos faziam-no econômico nas demonstrações afetuosas. Adivinhava-se, entretanto, que a moça ocupava-lhe no coração o lugar dos filhos que não tivera nem teria jamais. A menina vivaz, habituada a falar alto e desembaraçadamente, não escondia a sua afeição tanto mais que sentia confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma tenacidade em seguir um sonho, uma ideia, um voo enfim para as altas regiões do espírito que ela não estava habituada a ver em ninguém do mundo que frequentava. Essa admiração não lhe vinha da educação. Recebera a comum às moças de seu nascimento. Vinha de um pendor próprio, talvez das proximidades europeias do seu nascimento, que a fizera um pouco diferente das nossas moças.

 

Vicente Coleoni

Imigrante italiano, fora por muito tempo quitandeiro ambulante, época em que conheceu o major Quaresma, um freguês assíduo. Passando por dificuldades financeiras, recebeu ajuda de Quaresma. Com sua quitanda, prosperou, tornou-se empreiteiro e enriqueceu. Casou-se, teve uma filha (Olga) e, como forma de gratidão, fez de Quaresma o padrinho dessa criança. Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major, oriundo de sua qualidade de funcionário e sábio.

Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele sagrado res­peito dos camponeses pelos homens que recebem a investidura do Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil, ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em grande consideração a erudição do compadre.

 

Dona Adelaide

 

Irmã mais velha de Policarpo Quaresma, uns quatro anos, não entendia muito bem as ideias do irmão, por isso não as aceitava. Segundo o narrador: fria, sem imagi­nação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um grande contraste com o irmão, mas o acompanhava sempre, sentindo-se na obrigação de cuidar dele.

Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a irem jantar. A sopa já esfriava na mesa, que fossem!

– O senhor Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit-pois, mas Policarpo não deixou. Disse-me que esse tal petit-pois é estrangeiro e que eu o substituísse por guando. Onde é que se viu frango com guando?

Coração dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade e não fazia mal experimentar.

– É uma mania de seu amigo, senhor Ricardo, esta de só querer cousas nacionais, e a gente tem que ingerir cada droga, chi!

 

OS HIPÓCRITAS

 

General Albernaz

 

Um dos muitos militares incompetentes e interesseiros que fizeram parte da obra. Pai de cinco filhas, Ismênia, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, e de um filho, Lulu, não media esforços para tentar casá-las e conseguir um pistolão para admitir o filho na Escola Militar.

O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fora sempre ajudante de ordens, assistente, encarregado disso ou daquilo, escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um bom chefe de secção e a sua inteligência não era muito diferente dos seus hábitos. Nada entendia de guerras, de estratégia, de tática ou de história militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida às batalhas do Paraguai, para ele a maior e a mais extraordinária guerra de todos os tempos.

 

Ismênia

 

Filha do general Albernaz, era o símbolo de “moça casadoira”. Noiva do Cavalcânti, não morria de amores por ele, mas não podia pensar na ideia de ficar para “tia”, pois fora criada ouvindo a mãe dizer: – Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar... Foi abandonada pelo noivo após a sua formatura. No leito de morte, após longo período de demência e definhamento, fez um último pedido: ser enterrada vestida de noiva.

O enterro foi feito no dia imediato e a casa de Albernaz esteve os dous dias cheia, como nos dias de suas melhores festas.

Quaresma foi ao enterro; ele não gostava muito dessa cerimônia; mas veio, e foi ver a pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida de noiva, com um ar imaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto. Era ela mesma; era a Ismênia dolente e pobre de nervos, com os seus traços miúdos e os seus lindos cabelos, que estavam dentro daquelas quatro tábuas. A morte tinha fixado a sua pequena beleza e o seu aspecto pueril; e ela ia para a cova com a insignificância, com a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida.

 

Cavalcânti

 

Noivo de Ismênia, era estudante de odontologia, um curso semissuperior de dois anos. Tendo seus estudos bancados pelo pai da noiva, Cavalcânti pro­longou o curso por quatro anos. Não tendo mais feito de prolongar essa explo­ração, formou-se. Após a festa, para não marcar o dia do casamento, fugiu para o interior, deixando Ismênia inconsolável.

Cavalcânti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara para o interior, há três ou quatro meses, e não mandara nem um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e ela, tão incapaz de um sentimento mais profundo,de uma aplicação mais séria de energia men­tal e física, sentia-o muito, como cousa irremediável que absorvia toda a sua atenção.

Para Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado de existir.

 

Genelício

 

Namorado e futuro marido de Quinota, uma das filhas do general Albernaz, e empregado do Tesouro, Genelício era o símbolo do “puxa-saquismo”, da bajulação despudorada e do oportunismo, sempre visando a conseguir um cargo melhor.

Não havia ninguém mais bajulador e submisso que ele. Nenhum pudor, nenhu­ma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo incenso que podia. Quando saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as mãos, até poder apanhar o diretor na porta. Acompanhava-o, conversava com ele sobre o serviço, dava pareceres e opiniões, criticava este ou aquele colega, e deixava-o no bonde, se o homem ia para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários de nascimento, era um soneto que começava sempre por – “Salve” – e acabava também por – “Salve! Três vezes Salve!”.

 

Contra-almirante Caldas

 

O que o general Albernaz fez no Exército, o contra-almirante Caldas fez na Marinha, ou seja, quase nada, sempre encostado em serviços irrisórios. Sua história se resume no navio que nunca comandou, o couraçado “Lima Barros”. Mandado de um lado para outro, à cata de seu navio, não sabia que este tinha ido a pique, durante a Guerra do Paraguai.

Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais. Deixaram-no “encostado”, como se diz na gíria militar, e ele levou quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a capitão de fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a promoções de oficiais. Comprava repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura administrativa.

 

Dr. Armando Borges

 

Marido de Olga, formado em medicina, era como tantos outros, ambicioso, interesseiro e preconceituoso. de tão fútil que era, certo dia entrou em desespero por sair de casa sem o seu anel de doutor. Apesar de viver com a fortuna de seu sogro, sempre queria mais, pretendendo empregos públicos com bom salário e pouco trabalho. não tinha boa convivência com a mulher.

Naquela carreira atropelada para o nome fácil, ele não deu pelas modificações da mulher. Ela dissimulava os seus sentimentos, mais por dignidade e delicadeza, que mes­mo por qualquer outro motivo; e a ele faltavam a sagacidade e finura necessárias para descobri-los sob o seu esconderijo.

 

Inocêncio Bustamante

 

Assim como o contra-almirante Caldas, o major Bustamante, apesar de interes­seiro, era servil e humilde e também vivia de demandas, não passando um dia sequer sem ir ao quartel-general para ver o andamento de seu requerimento e de outros. A sua patente era honorária e foi-lhe concedida por ser voluntário da pátria.

Num pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros.

Não se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser tenente hono­rário e também da Guarda Nacional, requereu lhe fosse passada a patente de major, visto que dous galões mais outros dous fazem quatro – o que quer dizer: major.

 

Dr. Campos

 

Era médico, fazendeiro e chefe político do pequeno município de Curuzu, onde Quaresma comprara o sítio Sossego. Interesseiro e ardiloso como uma raposa, não conseguia convencer o major a ser seu aliado e a participar das falcatruas “elei­toreiras”. Como vingança, obrigou Quaresma a cumprir certas leis municipais. O doutor não se zangou. Pôs mais unção e maciez na voz, aduziu argumentos: que era, para o partido, o único que pugnava pelo levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexível; disse que não, que lhe eram absolutamente antipáticas tais disputas, que não tinha partido e mesmo que tivesse não iria afirmar uma cousa que ele não sabia ainda se era mentira ou verdade.

Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre cousas banais e despediu-se com o ar amável, com a jovialidade mais sua que era possível.

(...)

Em virtude das posturas e das leis municipais, rezava o papel, o Senhor Policarpo Quaresma, proprietário do sítio “Sossego” era intimidado, sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.

 

Marechal Floriano Peixoto

 

O presidente da República, conhecido como “marechal de ferro”, foi alvo de sátira e crítica por parte do narrador; não só ele, mas todo o governo foi descrito de maneira degradante, um verdadeiro retrato do Brasil daquela época.

O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento, representativo e elo­quente. Não era raro ver-se pelos divãs, em outras salas, ajudante de ordens, ordenanças, contínuos, cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes, quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.
Notem que o marechal foi descrito de maneira desoladora tanto física quanto moralmente:
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande “mosca”; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos.
Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo, e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.


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